Novamente, mais uma vez, penso na guerra que não existe na pintura. Pinto e combato. O pincel e mais que ele, as tintas recriadas em cores, são armas poderosíssimas. Tanto quanto as que são vendidas no mundo. Bem mais. O poeta declina, pensa na Arcádia, engatilha o pincel e mata. Não como os covardes guerreiros do ar, mas o pintor, desde que poeta, deve matar. Não o que está vivo, como os covardes guerreiros do ar, mas como os poetas, o já putrefato. Um mata criando, o outro matando. Não conheço nenhum pintor que tenha matado uma criança. Átila, os romanos as passavam na espada. Hoje as corporações as enterram em escombros. Pudesse o meu pincel acabar com este mundo e criar outro, de poetas e sábios pacíficos -, pudesse ele recomeçar os Estados Unidos do zero, o próprio mundo do zero. Um xis no mundo do capital. Pobre mundo do capital. Mesmo a França perdeu a vergonha. Virou mesquinha, egoísta. Já não tem artistas. Acabou-se os Estados Unidos, pálida idéia do que morreu, armadilhado. Vai ficar Cole Porter, Little Richard... Li a orelha, rapidinho, de um livro de Chomsky: a mídia a tudo dita, oprime e corrompe. Já sabia, na própria carne. Eis aí a Ditadura das corporações dos ladrões... e eis porque tanto admiro meu pentavô Tristão Araripe. Ladrão que rouba de ladrão... tem um milhão de perdões e vira herói morto em Santa Rosa, médio Jaguaribe, Ceará, Brasil. Um dia ainda plantarei um jardim em Santa Rosa. Rosas, por que não? Uma viçosa pereira do sertão. Ninguém supliciado nela. Neste dia acharei os ossos de Tristão no chão, espalhado pela areia. Ora, que Tristão morreu lá não há dúvida. Assim, basta pegar um punhado de terra do fundo da represa do Castanhão e proclamar: eis aqui os ossos de Tristão, nosso maior e melhor guerreiro.
Poeta, pintor, aedo, contador, narrador e cantor, o artista combate o bom combate. E Tristão o combateu muito bem. De modo que o recorro e enalteço, como exemplo, em contraste com estes guerreiros covardes, que fogem do corpo-a-corpo. Pensem e me digam: num corpo-a-corpo quem venceria, Bush ou Bin Laden? Talvez morressem ambos... mas talvez Bin Laden vencesse. Assim como o venceu Tristão, mesmo vencido em Santa Rosa. O que lhes dar, então? Uma rosa, uma rosa para Tristão:
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Tristão de Alencar Araripe / 2002 |
Triste Ana, triste Tristão. 1824. Seca, fome, guerra e peste. O cenário é infernal, a dor geral. A mais bela república do Brasil começava a ruir. Tristão Araripe, seu comandante supremo, sua legenda viva, está só. Restam-lhe poucos; a mãe Bárbara de Alencar, o irmão Alencar e uns poucos que o acompanham até o fim. Triste fim. Sem Ana, a mulher, a revolucionária, a articuladora, a mensageira da Independência e da República, sem os filhos. Traição por sobre traição, deserções, vis ambições, incontáveis assassinatos, vinganças, morte por sobre morte - Leonel Pereira de Alencar, o filho Raimundo e mais 8 parentes são trucidados em Jardim. Bela Jardim ensangüentada. Tristão, nobre Tristão entre velhacos, resiste. Recusa o falso perdão imperial, a fuga oferecida para os Estados Unidos. Tristão consciente, Tristão romântico, corre pra lá e pra cá a salvar a sua, a nossa Confederação. Conquista e reconquista Aracati e Fortaleza. A Inglaterra, Império do Império Português, quer sua cabeça, oferece recompensa. Faminto, o sertão dos homens desesperados caça sua cabeça de ouro. Tristão luta, até o fim o guerreiro luta. Acossado, naquele barranco jaguaribano de Santa Rosa, sozinho, o primeiro Presidente republicano da primeira República do Brasil resiste. A hora é final, toda hora é final. Fatídico 31 de outubro. Terrível manhã. Todo tiro é brutal, enorme, e vara-lhe o peito, abrindo-lhe um rombo enorme. Tiro desnecessário, puro horror, crueldade por sobre crueldade. Miséria humana total. Cortam-lhe a mão de tantos belos gestos, calam-lhe a voz da Independência, da República, do Abolicionismo, e jogam-lhe pedras por vários dias. Dias imensos, o sol ardente, Tristão insepulto, de braços abertos, amarrado a uma pereira negra. Negro vulto ressequido e evitado. Espantalho vivo da República.
Traído e abandonado é como um Cristo amaldiçoado; despedaçado é como Tiradentes esquartejado. Mas não, mas não para sempre.
Glória e consciência do porvir. Ninguém amou o Ceará mais que ele. Houve um tempo em que a Confederação vitoriosa poderia ter se separado do Brasil. Bárbara de Alencar, mãe da Independência e da República do Brasil, não quis esta solução. Tristão sim, e ainda que sem discussão aceitasse os conselhos da mãe, quis o Ceará independente, e quem sabe o Ceará país.
Romântica República dos romances imortais. Tristão Araripe e Ana, depois Triste de Alencar Araripe, é o mais belo e trágico dos nossos amores esquecidos. Visto o perigo ele mandou Ana e os filhos para a fazenda do Sitiá, na Serra Azul, dos Queiroz Lima, e foi para lá que procurou chegar quando o fim se avizinhou. Tivesse ele esquecido o Sitiá e talvez se salvasse, e a República do Equador. Tivesse ele não se desencontrado de Caneca, Filgueiras e Alencar, conforme sustenta Antônio Dantas Alencar, e talvez a Confederação tivesse sido vitoriosa. Tivesse. Belas hipóteses.
Hoje é tudo sonho. Sonho e Glória. Legado.
Mas 180 anos depois uma pergunta se impõe: por quem, por quais idéias lutaria hoje Tristão?
Uma rosa para Tristão. Uma rosa para Ana Triste, triste rosa de Tristão.