Conheci Tiradentes em 1965, com Maria Fernanda, Othon Bastos, Isolda Cresta, o lendário Padre Nereu e o maestro e compositor Edino Krieger, ocasião em que montamos no Solar dos Ramalhos uma adaptação do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles.
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| Tiradentes / Arredores / 1993 |
Nereu era muito bonito pra ser padre. Um dia, para felicidade de Deus, deixou a batina. Lembro-me que Fernanda num bom-gosto moleque inventou-lhe umas fitas coloridas no violão,que ele bardamente tocava, encantando a platéia. Othon Bastos era um pequeno príncipe. Em cena crescia como um imperador. Isolda era alegre e gaiata, lutou contra a ditadura e chegou a ser presa. Assisti com ela e seu pai, Costa Pinto, o dia em que os americanos pousaram na Lua. O pai era comunista histórico e jamais acreditou no feito. Na época eu acreditei. Hoje, duvido. Edino era um músico de mão cheia e estava sempre acompanhado por sua simpática mulher, de apelido Neném. Fernanda, bem, Fernanda era um caso à parte. Liderava todos nós. Quando falava era como se o Old Vic baixasse no terreiro. Uma atriz e tanto, e que amei muito.
Bem, havíamos estreado a peça no Teatro de Ouro Preto, durante o primeiro festival de inverno, e na volta fizemos esta única e rápida representação em Tiradentes, vividamente assistida por muitos tiradentinos. Naquela época Tiradentes era igual e ao mesmo tempo muito diferente. Igual porque ali estava tudo que a faria singular, seu povo, seus novos habitantes, sua magnífica Serra e Igreja Matriz, esta caixinha de jóias que é a Igreja do Rosário -, onde me casei com Cidinha -, o alto do São Francisco, tão lindo daqui do estúdio, o Chafariz, os frontispícios inclinados como o Parthenon, o trenzinho de graça tão infantil e todo enfim o seu conjunto harmonioso e tão belamente humano. Ali estavam as casas que haviam vencido o modernismo destruidor. Pessoas encasteladas. Ficou o quarto sacana do Padre Toledo.Vai ficar: a pinacoteca da Cadeia. Isto é, se a comunidade (principalmente a dos sábios tiradentinos) atender a uma antiga reivindicação dos artistas. Contudo, todas as pedras ficarão.
Diferente, muito diferente, porque a morte aqui palpita com todas as forças, e tanto que tudo se conserva e transforma. Diferente por ser viva. A vida que conserva e preserva. Tomara! A cidade ainda tolera os carros e caminhões que a destrói e descaracteriza), a comunidade ainda não participa das decisões sobre o seu patrimônio e o IPHAN carece de uma apreciação estética, o que vem provocando danos irreparáveis à paisagem geral. Por outro lado, a TV Globo ainda se acha dona da praça e de vez em quando acha de fazer umas filmagens nos cenários gratuitos da cidade, os deturpando, inclusive, e impedindo aos moradores o direito de ir e vir. Cavalos soltos e preso nas charretes continuam emporcalhando e mal cheirando a cidade, além de espalhar micuins (carrapatos). O Córrego de Santo Antônio continua imundo, ainda que nasça à apenas alguns poucos quilômetros do centro da cidade. Também me assusta o barulho oportunista dos comerciantes oportunistas, que também já não estão respeitando a postura legal municipal de não pendurar suas mercadorias pelas fachadas das casas coloniais. A política oficial, pobre de nós, continua oligárquica e bem inoperante.
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| Frutas com Serra de São José de Tiradentes / 1995 |
Pois bem, falamos de coisas agradáveis: nunca pensei que anos depois desta memorável representação viesse a morar na cidade, já com a minha filha Anaí, e por tantos anos com Cidinha e ver nossos gêmeos Octávio e Victtoria nascerem aqui e por aqui correrem nesta Ladeira da Matriz, de tanto encanto e que tanto gosto, e onde fui e sou muito feliz, mormente agora quando junto com ela e alguns amigos criamos a Fundação que honra e leva meu nome. Sim, Tiradentes é uma pintura alegre e feliz, radiosa e sem arrogância, nova e transparente. Intuitivamente, e pensando muito, aos poucos, fomos fazendo a obra. Independência e Liberdade, belas palavras daqui. É certo que a radiosidade e a alegria de Tiradentes, Ouro Preto, Catas Altas e de toda Minas, possa ser uma construção pessoal, natural. Minas é a França do Brasil, e Tiradentes, Paris…e assim foi, neste Tiradentes romano, por sua palheta gentil, suave, quieta, que mais atingi a pessoalidade barroca. Pessoas como montanhas, o barroco, a linha, a alegria, a liberdade. Volutas uvas sensuais ali na igreja da Matriz. E assim, o barroco poderia ser eu. O meu estúdio de vidros coloridos.
De modo que cinco anos depois de morar e pintar a Bahia e o Ceará, seus mares e praias, fazendas, flores e casarios, heróis e heroínas eis que torno a pintar Tiradentes, numa revisita meio inusitada - eu mesmo escrevi na apresentação da exposição Tiradentes Revisitada - que dediquei à Zizinha, minha amiga e vizinha, recentemente falecida, mas que não passou…como tudo nesta terra, como Tiradentes, tudo morre e não passa, e assim Zizinha ficou, e por tantos e tantos bons e belos motivos. Saudades de Zizinha, saudades do Tiradentes que sonho.
