O Encantado era um bairro proletário, mas de boas casas também. Casas de jardim na frente e longos correr de casas, mais ou menos iguais. Naquela época o nosso bairro já estava unido ao Engenho de Dentro, um dos mais importantes do Brasil Império. Assim, ao lado das casas dos pobres e dos ferroviários das Oficinas da Central do Brasil restavam casas senhoriais e pequenas chácaras de fruteiras, e muitas casas já "modernosas", sempre mais pobres e "práticas", e quase já sem arte. Arte mesmo não havia, senão a artezania dos belos portões de ferro, raras fotos de pioneiros da fotografia, alguma cantaria e lindas maria-fumaças de ferro preto que passavam em frente a nossa casa. Vez por outra passava um circo. Pobre e cigano. Encantado, não fugi com a trapezista, mas briguei com o palhaço. Arte mesmo só nas nossas pipas, piãos e balões. Havia colégios... mas, aqueles não eram tempos artísticos, nem culturais, 1940, ainda que na rua Gustavo Riedel casas do início do Século XX apontassem uma realidade idealista, que muito claramente tinha ficado para trás, morta de modernidade e tudo o mais. Já naquela época eram raríssimas as construções idealistas. A decadência era notória, e nada nobre, mais parecendo um crepúsculo demorado de cinzas. E isto se podia ver pelas águas do Rio Encantado. Poluidíssimas, iguais às estas que se vêem nos baixios favelados deste começo do novo século, tal qual igual, a mesma dignidade quebrada que o longo tempo não bastou para erradicar. Jamais esquecerei estas águas, cinzas esverdeadas e de leito escuro e pedras sem beleza, com pedaços de cimento armado caídos e de onde bailavam limos pegajosos e mortos... mas, contudo, todavia, havia peixinhos! O Encantado era um rio de peixinhos. Barrigudinhos, incomíveis, espertos e que caçávamos para os nossos aquários improvisados de meninos pobres. Imagino que viessem do Morro da Água Santa, longe uns três quilômetros do trilho do trem, onde morávamos. Ali papai exercia sua medicina e mamãe o ajudava, num laboratório quase de fundo de quintal, que durou pouco, pois logo faliu, como tudo que falia no Brasil dos pobres. Havia chegado a América e com ela os grandes laboratórios farmacêuticos que quimiquizaram papai e mamãe, ainda que quando isto se deu eles já estivessem separados. O dinheiro separa, a Pintura une e casa. Foi terrível. Sofremos muito esta separação, de modo que me via repetidas vezes compelido a subir o Morro da Água Santa avistado ao longe para ver o Encantado de cima e de longe. Era um morro bonito, muito alto, de grandes pedras pretas já coberto do capim colonião invasor. Restaram algumas grandes jaqueiras e colossais mangueiras onde eu me sentava para descansar da subida e ver a vista. Dali se divisavam todos os bairros vizinhos, o Encantado propriamente dito, o Engenho de Dentro, a Água Santa e ao longe o grande teto vitoriano da estação do Engenho de Dentro, uma inesperada imponente construção de ferro, alta, escura...uma verdadeira estação de ferro vitoriana... linda, assustadora, poderosa.
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| O Docodema / O Govêrno do Poeta / 22 de 50 / 1986 |
Um dia, me aventurando por aquele lugar longínquo e perigoso dei de cara com um muro muito alto. Subi e vi os loucos do hospício, no pátio, nus - e uns outros que gritavam desesperados das janelas engradeadas... mas, o que mais me ficou foi um destes seres nus no pátio que olhava sorridente e perdido para uma pipa, tranqüila, no único céu que lhe permitiam ver...anos depois, conheci a Dra. Nise da Silveira, e acariciei seus gatos (um deles, todo preto, foi presente meu) e ao visitar o Museu do Inconsciente, subitamente, vendo aquela arte ínsita, senti medo - e discernindo sobre a necessidade da beleza conclui ter sido aquela uma visão transformadora. Estava tudo rachado, mas os olhos que me mostravam realidades tão insuportáveis também podiam me dar prazer. E não só o prazer oriundo da beleza e da liberdade, mas do bom combate. O bom combate das pipas. Tudo que aprendi para a pintura aprendi com as pipas. Inclusive o bom combate. Todos os gestos elegantes (exceto os genéticos e os recentemente adquiridos), de apuro e leveza, todas as linhas riscáveis ou não, aprendi com as pipas. Inclusive uma sociologia, uma filosofia, uma moral, uma estética. Não conhecia o menino que soltava a pipa mas, por ela, eu sabia se ele era bom ou mau, ou ambos, se era artista ou não, se era honesto, astuto ou oportunista, e mesmo se tinha sorte, poder; se era um grande combatente, alguém que valesse o combate. Como as telas, pelas pipas podia-se conhecer o pintor. Eram pipas feitas por ele, e por ela voaria nos céus, tinham que ser bem feitas, talentosas, experimentais, apaixonadas e de apuro técnico. Um brinquedo de valer a pena; pois o que queria aquele menino, aquele pintor senão voar e ser invisível? Invisíveis meninos-homens da Água Santa; meninos prodigiosos, de pipas pequeninas, muito bem envidradas em linha 24, muito leves, cheias de arte e poder. E não era à-toa que ali na Água Santa criou-se o mais belo samba-enredo de Escola de Samba, em homenagem a Tiradentes, e que começava assim: "Joaquim José / da Silva Xavier...” E também não era à-toa que ali um grito anárquico e espontâneo, dionisíaco mesmo, insistia e teimava em prolongar o Carnaval, saindo em bloco, o Bloco da Água Santa, em plena quarta-feira de Cinzas - um escândalo, até hoje, e que sempre resultava em pancadaria generalizada pela polícia.
