Minha Vida de Pintor / XIX
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Artista jornalista -, sim, até que podia dar certo. Fosse no Jornal do Brasil, no Correio da Manhã, na Última Hora, no Dia e em A Notícia todos precisávamos de boas e novas idéias. Eu, naturalmente, fazia tudo muito bem-, isto é, todos achavam isto, menos eu, que sabia a fraqueza e o blefe que era. Como podia um jovem assim tão desamparado alcançar e tão rapidamente (e do fim pro começo) os mais altos postos da difícil e disputada carreira de jornalista, e ademais no Rio de Janeiro? Era mesmo coisa pra artista. Na verdade, o que eu mais gostava era a vida do jornal. Fascinante, aquela porção de gente fumando e escrevendo e andando pra lá e pra cá, pessoas ocupadas, outras não fazendo nada, conversando, mas de um modo geral todas energizadas, a café e muito cigarrette. Entre todos lembro-me do Reynaldo Jardim, do Alberto Dines, do Zuenir Ventura, da Lea Maria, da Germana De Lamare, do Vagn, do Ruy Castro, do Leo Montenegro, do Hilcar Leite, do Grisoli, do Zózimo, do Carlos Lemos, do Araújo Netto, do Mário Alencar, da minha madrinha a Condessa Pereira Carneiro, céus quantos nomes, quantas lembranças, quantos esquecimentos, quantos adjetivos lindos eu não poderia hoje dar a cada uma destas e outras pessoas que não citadas, mas lembradas, como o Lan -, e que me perdoem a perda da memória -, e não só dos colegas, lembro-me que gostava das visitas que recebíamos na redação. Carlos Drummond de Andrade raramente ia ao jornal, e quando ia era uma festa. Um dia encontrei-me com ele a sós no elevador do antigo prédio do Jornal do Brasil, na Avenida Rio Branco, e disse-lhe da minha admiração pela rebeldia que era, e perguntei se ele já estava fazendo embaixada com as duas pernas com as pedrinhas que lhe embargavam o caminho. Ele disse que eu iria longe. Pena ninguém ter ouvido, e mais que isso a conversa tenha se acabado logo, pois era só um andar a vencer até a redação, e assim que perdi Drummond para sempre. Mas Drumonnd era antes de tudo um colega, embora no meu caso quase uns trinta e cinco anos nos separassem, e além do mais ele era excelso e já há muito tempo. Visita mesmo eram dos artistas e políticos, e até de pessoas mais ou menos anônimas que, em estando passando pela Avenida, subiam para nos visitar, assim como se toma um cafezinho. As mais lindas eram as visitas dos artistas de teatro que estavam estreando, faziam muito barulho, falavam todos ao mesmo tempo e aquele alvoroço todo nos fazia sentir importantes. Todo dia tínhamos uma visita ilustre, a nós mesmos ou aos colegas vizinhos, de modo que rapidamente nos habituávamos com as celebridades. Cheguei a pedir um cigarro a Tônia Carrero, esbarrei meio propositalmente com Norma Benguel, encantei-me com o Paulo Autran, discuti polidamente com o Gabeira, almocei com o Aurélio Buarque de Holanda, com o Darcy Ribeiro, com o Antônio Houaiss e me casei com a Maria Fernanda, céus, se naquela época o Brasil era Ipanema, como era, o Jornal do Brasil e o Correio da Manhã eram a ante câmara do Rei do Arpoador. Na verdade aquele era um mundo de reis. Chagas Freitas era um deles. E ela a minha madrinha. Dona Zoé vinha de uma família importante de banqueiros e animava a vida cultural do Rio de Janeiro com grande sabedoria. Era amiga da Dra. Nise e do Augusto Rodrigues. Queria liberar os loucos e educar as crianças pela arte, para a arte. Pois bem, era assim a minha madrinha. Registre-se que foi a mais madrinha de todas as minhas queridas sogras e a ela devemos o salvamento da obra de Lucílio de Alburquerque e de sua mulher, a também pintora Georgina, que estava a perder-se num porão do Palácio Guanabara. Ele, rudemente embrutecido sabia no entanto ser amável, e tinha bom gosto na compra dos quadros. Muito rico, gostava da pintura e parecia saber ser aquele o verdadeiro dinheiro. Muito esperto, tinha um humor fino entre rompantes de ódio, parecendo sentir-se acuado -, e sempre que podia dava um cochilo, pois era muito tenso. Paradoxalmente, tinha it , quase irresistível, não fosse o afastamento de tudo e de todos que mantinha e cultivava. Enfim, aquele parecia o rei perfeito do reino excelso, e até diziam ter sido ladrão, e que comprava arte -, e que me caíra no colo de graça , num casamento impossível e maravilhoso, céus, era tudo que queria. E mais que tudo e antes mesmo de tudo havia Katrine e seus seios de nácar, e seus belos cabelos ruivos... um táxi em Pequim. Um almoço em Bankoc, vendo passar multidões de aguapés, a beira do rio volumoso, uma foto em Amsterdã, um hotel em Portugal. O problema era eu ser comunista, embora, sem que ele soubesse, eu formasse com os comunistas mas me opunha a eles, apista convicto que era. Comunista e ainda por cima chinês, pois meu livro sobre a China foi o primeiro a sair depois do estabelecimento de relações diplomáticas, e tornou-se um best-seller, e de um dia paro outro vi-me marginalizado em pleno poder. Ademais, meus amigos mais chegados eram mesmo mais ou menos comunistas, pois à época éramos todos comunistas. Imaginem. Um comunista que depois de se amasiar com uma comunista famosa casava-se com a filha do Rei caçador de comunistas. Mas, hoje, vendo melhor, era eu o príncipe, o jornalista jovem e brilhante e ela...era muito linda, de modo que podíamos desafiar os deuses e até o Partido Comunista. Uma proposta concreta. Um dia meu mundo caiu, sofri como um cão abandonado e danado e fui exilado do Rio. Nas Itatiaias vivi meu primeiro eremitério, por treze anos. Mas, voltemos aos colegas. Reynaldo Jardim era o mais artista de todos. Desinventava o que inventava com mais rapidez do que criava. Ninguém amou mais o jornalismo que o Alberto Dines. O Zuenir tinha muita liderança e um jeitinho muito delicado de conversar. A Lea Maria e a Marina Colassanti eram umas gracinhas, pois além de belas escreviam muito bem. A Germana De Lamare era elétrica, baixinha e energética e editou o talvez melhor caderno de artes e cultura de todos os tempos, o Anexo, do Correio da Manhã, onde eu era crítico teatral feroz e irascível. O Vagn me chamou para o mundo, falou-me de coisas que eu não podia acreditar. Fez-me um retrato muito lindo. O Fortuna também, atrás de uma bananeira, vendo a Leila Diniz bailar como corista, em Tem Banana na Banda. O Ruy Castro era e continua brilhante. Cáustico, é o demolidor de Caratinga, gostei de tudo que escreveu, exceto seu livro sobre Ipanema, que achei muito incompleto, até por que não me citava, eu, que fui o Garoto de Ipanema antes da Garota. Leo Montenegro era cult por natureza e era dotado de marginalidade natural, uma adorável pessoa. Entrava no jornal depois de um trago. Hylcar Leite era um trotkista notável, muito carinhoso, sempre sorridente. Um dia a gráfica de O Dia pegou fogo, às 2 da manhã e eu ainda estava lá fechando o jornal. Fiquei em pânico. Hylcar Leite não. Ele já havia assistido a dez incêndios de jornais, uns naturais e outros tocados por adversários-, disse, para me acalmar, que as rotativas, o mais importante, não pegavam fogo. O Grisolli era um mixto de jornalista e artista muito bem terminado. Fino, sério, dirigiu para mim a Antígona, de Sartre, com a minha amada atriz Maria Fernanda, num cenário lindo de Hélio Eichenbauer. O Zózimo tinha um poder fantástico. Por duas vezes, pediu-me que o substitui-se em sua coluna social. Na última, redigi e publiquei uma nota que resultou meio estranha, em que dizia que o filme The Go Between, recém lançado, deveria ter sido traduzido por O Pontífice. Sinceramente não pensei no pontífice de fato, o Papa, que na época era o simpático e lúcido João XXIII, mas simplesmente numa tentativa original de uma tradução correta. A nota, porém, foi interpretada pelo Vaticano como uma influência de uma remota dissidência católica na cúpula do JB, o que exigiu da Condessa uma viagem à Roma às pressas, acompanhado por mim, o redator da nota, que iria se explicar pessoalmente a Sua Santidade, ao lado da Condessa. Beijei curvado o imenso rubi do anel papal, apavorado, e tiramos fotografias. Nada mais. A mim coube ouvi-los, só sorri e quase não disse nada, o que foi bom, pois fiquei dias e dias pensando no que iria dizer e conclui que o melhor era dizer nada. Do Papa (não falei, mas observei) o que mais me impressionou foi o contraste evidente entre sua figura campesina e sua formação clerical, muito bem mostrada por suas roupas finas e ricas e sua pele branca e muito bem tratada naquele rosto marcado de homem do povo, bonachão, fosse eu já pintor e teria lhe pedido uma comissão. Bem, o Araújo Netto era um índio da Amazônia que gostava de Fellini. Muito experiente, jornalista desde sempre, foi em muitos aspectos o nosso embaixador em Roma. Ele e o excêntrico poeta Murilo Mendes, o verdadeiro Embaixador do Brasil, o meu amigo de Roma, e de quem mais tarde falarei, dele e de sua vizinha Audrey Hepburn, não confundir com Katrine, ambas belas mas bem diferentes. Mário de Alencar. Mário, na verdade, era quem mais gostava de mim no JB. Era um Alencar de muito valor. Um dia o Fernando Gabeira, que ainda não tinha seqüestrado o embaixador americano, achou de criticar um texto meu sobre Louis Armstrong, aliás com certa razão, pois eu nada sabia sobre Louis Armstrong, senão o que havia lido e copiado no Departamento de Pesquisa, dirigido pelo próprio Gabeira. De fato ele tinha razão, pois eu não gostava nada daquela história de lead e sub-lead, pois achava que se o elefante fosse famoso e o homem que ele havia pisado e matado não, a notícia era o elefante e não o pobre do homem morto.Tempos depois soube que em verdade ele queria dar meu cargo de redator para uma atriz amiga de seu grupo -, e no fim da história, fui eu quem virou escritor, e não a atriz. No fundo era já o artista que se incomodava com aquela rigidez norte-americana que começava a engessar as redações frias e distantes das visitas que a alimentavam de prazer e notícias. Enfim, nesta rápida listagem de pessoas, lembro mais uma vez da Condessa. Após a recepção do Papa, fomos almoçar no Café Fiori, em Piazza de Spanha. Falamos da arte e da cultura e da Itália. O mais impressionante naquela mulher era a sua história de vida e de como assim como eu tinha a nobreza natural marcada na testa, pouco importando o sangue, pois tinha vivência inaudita e até lendária e que diga-se mostrava com singeleza e sabedoria. Disse para eu sair do jornal ou comprar um. Segui seu conselho e fundei um, o Brazilian Gazette, com o Antônio Olinto, mas sai logo no terceiro número, após protestar pela inclusão do General Hugo Banzer, na Bolívia, um outro gorila, na capa, sendo eu o editor.
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O Morro do Araripe / Quixadá / Ceará / 2003 |
Um dia, já crítico de teatro do Correio da Manhã escrevi sobre uma atuação de Tônia Carrero, não sem antes pedir para entrevistá-la, pois era também fascinado por sua beleza. Não me lembro o nome da peça e muito menos do que disse na crítica, lembro-me apenas dela e de sua beleza. Não digo que me apaixonei por ela, mas não seria mentira dizer que se eu pudesse a teria raptado, levado para o bosque de Fontanebleau e ali a possuído várias vezes. Já Norminha era uma graça. Tinha mais coragem que eu, desafiava os militares e quando estes a encurralavam ela sabia safar-se. Era muito esperta e só se envolvia com quem queria. Fiz tudo para amá-la. Por duas vezes me deu um bolo num encontro marcado, que eu imaginei pudesse ser uma inesquecível sessão vermuth, e não foi. Só não a tive porque logo viu que seria uma fria se envolver comigo, um jovem sem eira nem beira. Mas me deu três beijos em três ocasiões distintas. Tive a impressão que para ela aqueles beijos eram mais importantes que os intercursos, já então banalizados e pouco artísticos.
Fernanda, eu aprendi o amor com ela. O amor, a arte, tudo. Com ela vivi num claustro mozartiano, entre colchas de renda branca, como marido e amante, como discípulo e mestre, três vezes por dia, durante cinco anos. Um dia fugi para Roma. Só pensava nela. Quando voltei a procurei e novamente reatamos. Fizemos teatro juntos, tomando chope no Bar Lagoa, viajamos por todo o Brasil. Um dia em Brasília, em plena Ditadura, representávamos no Teatro Nacional a peça de Tennessee Willians, O Bonde Chamado Desejo e, como lá pelas tantas a irmã de Blanche du Bois, Stela, chama os amigos do marido, bêbados e embrutecidos, de " gorilas” e como a platéia aplaudia entusiasmada, implicando-nos com os militares gorilas (golpistas), o Ministro da Justiça, Gama e Silva, resolveu punir eu e ela com uma suspensão de 30 dias. Fomos lá no gabinete dele, eu o chamei de " fascista” e ele mandou me prender. Fernanda implorou, disse que lhe dava um disco que ela mesma tinha gravado, autografado, com poemas de Shakespeare...e ele me soltou. Mas a classe teatral que vinha sofrendo o diabo com os militares respondeu entrando em greve. Foi a primeira vez em toda a história humana que a classe teatral fez greve, assim como nem mesmo no nazismo se ousou não permitir que um atriz e um animador cultural trabalhassem. Bem, como disse, a nossa foi uma vida venturosa, saltimbanca, de grandes prazeres, conversas nos bares, jantarem com amigos e idas cedo para a cama. Lembro-me em especial de um jantar no Trastevere. Eu morava lá, quando ela chegou dos Estados Unidos trazendo-me de presente um grosso casaco de pele sintética, marrom claro, muito bonito e que me ajudou muito a vencer a frio europeu. Comemos ostras, um carbonara, insalata e agnelo assado com rosmarinho. Ali resolvemos nos separar para sempre. A sobremesa, um pudim de caramelo, estava deliciosa. Ainda sinto-lhe o gosto dos lábios caramelados no beijo de despedida. Nunca mais a esqueci.
Um dia em Lisboa, encontrei-me com o Alberto Dines, pela primeira vez fora da redação. Excusado dizer que o Dines para mim era um cruzado do jornalismo, alguém que eu interpunha entre o Olimpo e a Redação. Um jornalista imitável e inimitável. Ora, todos sabiam disto. Mas, tive a sorte de estar com ele duas vezes fora da redação. Uma vez em Lisboa, outra no Hotel Buçaco, onde por coincidência nos encontramos. Em Lisboa vivia-se plenamente os dias imediatos que se sucederam à Revolução dos Cravos. Havia um pub na esquina da Avenida da Liberdade chamado pube, onde Dines, eu, Katrine Hepburn, Odilo Costa Filho e Maria, e a Maria do Luis Fernando de Vasconcellos e Souza, a Maria da Vista Alegre, célebre louça que se tornou uma família, nos reuníamos para saber as últimas notícias da Revolução. Maria da Vista Alegre. Dali, de seu belo terraço na Alfama, distante umas duas léguas do porto sobre o Tejo, de sua casa que sobrevivera ao terremoto pombalino, e em cujas paredes deixavam-se ver as marcas da tragédia, ali impressas para sempre, como uma vitória sobre a morte, ali naquele terraço eu suspirei profundamente enquanto ela me apontava o Rocio, bem abaixo. Poeta, Luis Fernando era um nobre.Tinha um grupo muito pobre de escritores, todos muito devotados, como o Ernesto Leal. Luis Fernando, eu dizia, era um português de grande dignidade. Um dia, uns meses após a derrubada de Salazar, visitando todos nós, Dines inclusive, uma quinta que o casal possuía no Alentejo, vi pela primeira vez uma cegonha, ou melhor, um ninho de cegonha mais uma cegonha dentro, com duas cegoinhas já crescidas, do tamanho de um pato. Fiquei mudo como um pasmo. Eu, que viera do Brasil, a terra do paraíso, como podia ainda me espantar com um pássaro? Mas, o pássaro era enorme e seu ninho uma casa de brinquedo de uma criança de 12 anos numa árvore, por sinal, linda e alta, bem por trás de sua enorme garagem de carruagens antigas, desusadas, ali a espera de um futuro museu. Pois. Naqueles momentos de revolução as coisas estavam sendo confiscadas e sumidas, e sabedor eu, jornalista que era, que famílias proeminentes estavam tirando de Portugal as jóias de família, me ofereci ao saudoso amigo para prestar-lhe este favor, o de retirar as suas jóias de Portugal, pois como jornalista eu não era revistado. Ele agradeceu e de pronto declinou. Jamais o faria -disse, tirar de Portugal a riqueza de Portugal, jamais. Lembro-me que Dines gostou muito disto, quanto lhe contei esta conclusão, no nosso segundo encontro trans-redação, no belo Buçaco. Não sei muito bem porque, mas disse-me que Luis Fernando me lembrava o Stefan Zweig, e hoje vejo que já naqueles longínquos anos ele já pensava na vida do extravagante gênio, digamos, brasileiro, e que de certa maneira acabou com o Brasil, pois o condenou ao eterno futuro. Pois. Ali no Buçaco, Dines, Lea Maria, Katrine Hepburn e eu, falamos de nossos destinos. Dines já estava pronto. Lea Maria, já se via, iria sumir e ganhar a mais linda pessoalidade, que naquela época já desabrochava evidente. Katrine tinha os seios mais lindos de Vênus. E estávamos todos debaixo de um lindo caramanchão plenamente cheiroso de glicínias azuis e eu disse com esse meu jeito intuitivo que devíamos brindar o vinho e o queijo da Estrela, que jazia esquecido na mesa a nossa frente, a alcance da mão. Eu brindei o fim da arte e da cultura nos segundos cadernos dos jornais, uma moda que virou regra e que apartou a arte da vida, dando-lhe um entretenimento banal, em troca de nada. Coisas da dominação. Dines brindou o Amor (o que me surpreendeu, confesso). Lea Maria pedia a Libertação e Katrine segurou minha mão e nada disse. Raramente ela dizia alguma coisa, aliás, era uma pessoa quieta e aparentemente recatada (e foi este meu erro)... e seus lindos lábios finos, os olhos de âmbar falso.
Fernanda, eu gostaria de dizer numa só palavra, numa só pincelada, tudo que a definisse e a fizesse lembrada para sempre. Ela era como Minerva. Ninguém falava mais bonito que ela, tinha a voz mais bela que ela, em português e francês e sobretudo em inglês tão perfeito quanto o dela. Várias vezes em conversas com ricos empresários entediados, homens da alta hierarquia do poder, a vi entre eles dominando a cena, tal a originalidade, a graça e a grande arte com que contava suas histórias e trazia à cena seus pontos de vista, originalíssimos, diga-se, e que faziam sucesso entre os apoiadores de suas montagens teatrais. Fernanda jamais perdeu nada. Tinha as mais belas pernas da fase posterior à primeira fase do cinema brasileiro. Seu mouro rosto, seus longos cabelos sedosos, sua pele gostosa, sua música, literatura, sua enfim toda beleza foi minha por cinco anos, pelo menos. Mas, isso tudo era nada, quase nada, diante da enorme lição de vê-la representar desde a coxia, onde sempre me postava. Aquele entrar e sair dos atores, do palco à coxia, e desta ao palco, avivava a minha imaginação. Ninguém representava melhor que ela. Eu a vi de trás e de lado, de cima e de baixo, representando e instantes depois a via saindo do palco como que de um transe, algo artístico e muito profundo. As vezes tinha medo que ficasse louca. Eu, que raramente representei, e aí confesso que fui um tolo, pois o melhor do teatro é representar, quase enloqueci. Um dia beijei sem que visse, depois da última sessão de um Hamlet, a própria caveira do malfadado príncipe. Jamais entendi porque fiz aquilo, beijar uma caveira de papelão, ora. E a arte era assim : entrar e sair do palco. Se você quisesse pintar uma árvore, por exemplo, seria necessário que representasse uma árvore seguindo um roteiro mais ou mesmo predeterminado e depois deixar de sê-la, quando de volta à vida fosse pintar. Eu ouvia as flautas de Mozart e os cantos gregorianos, ambos grandes novidades na época, e pensava numa pintura que pudesse retratar aquilo, uma pintura silenciosa e disfarçada como uma música de Bach, depois Vivaldi, Satie e vários renascentistas que trouxe em fitas de minha volta da Itália. E voltei como fui: sem um tostão. Uma tarde, passeando com Melina pela Via Apia antiga, diante de uma sepultura de uma matrona romana na margem da estrada, lemos uma frase : "Foi honesta e fiou lã”. Acho que assim eu a definiria, aquela grande mulher.
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A Fazenda de Bárbara de Alencar com Serra do Araripe / Crato / Ceará / 2003 |
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