Mas, não mais que eu. E só não a amei mais porque não pude, pois todos os meus amores terminaram por penúria financeira. Pobreza, esta praga que se abate sobre os povos do mundo desde que o Imperador Amarelo venceu o Imperador vermelho. Fosse eu um homem rico ou pelo menos estabilizado e teria sido um homem de uma só mulher, ou talvez de mulher nenhuma, e não marido de cinco, embora hoje seja um homem feliz, com Cidinha e meus filhos gêmeos, Octávio e Victtoria, e minha filha Anaí. Em verdade fui muito pobre e desamparado. Não fôsse assim e teria sido pintor prodígio, pois desde que ganhei e vi aquela figurinha difícil da bala Ruth eu teria começado a pintar. Fosse eu filho do Matisse e ele teria me passado aos pincéis aos 19 anos. Mas, era pobre, e vivia no Encantado, um bairro pobre nada encantado do Rio de Janeiro. Ali fui menino e ouvi os ecos rudes da guerra, quase morri de desinteria, e curei-me soltando pipa nos campos de futebol, correndo atrás de balão e me escondendo só e furtivo no Morro da Água Santa. Socializei-me pelas pipas, percebi o céu pelos balões e descobri desde cedo o valor do eremitério naqueles morros desérticos de capim limão, talvez um ensaio da força da renúncia e da vontade férrea.
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Figuras / Óleo sobre tela / 1960 - Talvez a única tela salva das seis ou
sete que pintei aos 19 anos.
Áureos tempos da minha meninice. Tinha medo de tudo, mas tudo tinha que disfarçar. Fraco, muito vulnerável, fazia crer ser o mais forte, para não ser trucidado. Desprezado pelas meninas, pelos meninos, acreditei ser irresistível e capaz de a todas e a todos conquistar. Sucesso, que eu me lembre, só meus olhos fizeram. Diziam ser grandes. Tinha também um calombo no lado de trás do crânio, objeto de hilaridade e que acabei escondendo de vez com uma trança que usei por 30 anos. Uma trança chinesa. Um dia comprei uma casa com o dinheiro que poupei não cortando cabelo. Mas, notável mesmo, hoje vejo, só meus desenhos. Desenhos angustiados de caras pálidas como a minha e que saiam muito de dentro para os cadernos de telefones, nos blocos de anotações...paredes, aviões caças de guerra, fantasmas e nada mais. Bom pintor, porém, sem o saber, eu preferia os livros. Caros livros que roubava, se preciso fosse (e eu sempre precisava) mas que pedia emprestado também, enfim, lia conforme me caiam nas mãos, uns atrás dos outros, compulsivamente. Li como um louco, inclusive livros. Lia o céu, a terra, as pessoas, o universo, principalmente se numa bola-de-gude. Não houve nunca um dia em que não me questionasse sobre as origens do universo, um assunto que me fascinava e transtornava. O que que era isto? - eu perguntava, muito mais do que de onde vinha, quem era ou mesmo para onde iria. Isso: eu queria o brilho extravagante, a estrela, a bela razão para viver e que valesse realmente a pena. O mundo era triste. Pena. Escrevi como um louco. Livros, literatura, artigos, críticas, sugestões, idéias, cartas e e-mails em profusão. Mas, era tudo pintura. Fixação da desaparição. Invenção da desaparição. Via os morros passando e os queria para sempre, vencendo o tempo e me eternizando (mais ou menos) naqueles campos de futebol, perigosos, como todos que vivi, no Rio, em Roma, na China, Bahia e Ceará. É 'verdade: sou um pintor de Minas Gerais, moro lá, fiz quase toda a obra lá, e cá tenho amigos e clientes que me compram os meus cobiçados quadros. Muitos quadros. Sou o pintor que mais vende telas em Minas. Mas não sei se o que pinto é pintura. Alegria, vida, um pouco de tudo. Sei, porém, que é dinheiro, o verdadeiro. Deveria estar mais rico, contudo.
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O Rio da Prata do Mirantão/ Acrílico sobre vela náutica / 1980 - Minha primeira segunda tela |