E ela ali nua, pura arte, figurava pleno o espaço, enchendo-o de linhas e cores, fótons e cristais, luzes e cores invisíveis... e ali estava ela, a arte que não está na forma e nem mesmo nela mesma, e que tudo faz surgir fartamente e por vezes era tal a sua criação que a natureza se recolhia superada, e a nova forma, a nova arte, a substituía.Tudo consistia em transformar os tijolos da velha torre em confetes coloridos. Sim, parecia existir um plano na natureza. Ele é equilibrado e desequilibrado. Ele é tudo. Ser o plano, procurar estar aqui, é ser humano, vivo ou morto, orgânico ou inorgânico, virtual ou transfigurado. É; é tudo um bolero da vossa parte. Uma arte genuína que pede um suporte genuíno. Gentil-homem!? Eu? Às vezes. Sou um nerdental de Portugal, último de uma linhagem de bons catadores de conchas, pescadores conquistadores, nobres do algodão e fazendeiros de bois, palmilhando mãos e portos do Mediterrâneo, como meu avô Insibulus Trasíbulus Marcoisos, marinheiro e vinicultor de Corintho, até que encontrei uma bela cron-magnon, em Freixeiro de Sotelo, Minho, loira e desgrenhada, com uma bola de sol nos cabelos, uma linda bola de fios de sol, e uns enfeites de pena e madeira-, e de pronto me apaixonei. Ela era linda e álana. E logo me vi sozinho no mundo, o primeiro da nossa raça. É isso, fui miscigenado ali, na Foz do Mondengo, duas vezes vindo da Espanha. O resto era ignorância. Régua, Lamego, lindas, eu vinha da Espanha, terra dos ossos escolásticos, das rosas de ossos, dos espinhos sangrados, das mulheres sozinhas, tudo de pedra e sal. Tal qual aqui ou Portugal. Tauromaquia. Era tudo tauromaquias.
 |
A Lua / Tarot / 1986 |
Ser, significar é fazer a arte surgir. Vejo-me assim: num alto de uma escada primitiva apoiada numa grande rocha, onde pinto, num belo vale apertado. Deserto!? Para mim sempre foi um oásis. Um quadro, nem que seja por um segundo, terá que ter uma moldura. Que se derrubem as paredes, ao invés das molduras. Os olhos, os olhos mesmos já são a moldura. É moldura que a arte cessa, de modo que o artista, se quiser, deve pintar também a moldura. Não, jamais eliminarei a base, a Al Qaeda, eu sou a base. A linha libertária, as cores já são a liberdade, logo o pintor deve desenhar pintando, pois a linha há de revelar o pintor. Arte, "cosa genética”. Disse ele, digo eu. A Arte é inteligente, tem lógica e razão, e mais que isto, tem realidade própria, pessoal e intransferível. E a Pintura deve ser uma arte veloz. Os morros passam, correm. Pintar, pintar como um gato pega um pardal. Tentar por pintura na inteligência. Ora, ora, eu amo o talento que corrige a regra e a emoção. A pintura, que tudo faz plano, de regras férreas e belos vôos. Pois é, numa civilização pária, o artista é um racionalista, um emocionalista. E se querem saber digo que fomos muito felizes em La Pedrera, ali à vista do Escorial. Pois eram pedras, aqui como lá, um leito de pedras do fundo do mar. Pintar pedras, nas pedras, eu sou um pintor de pedras, desde o início, quando transcrevi visionadamente 1500 imagens seqüenciais, arcaicas, a que chamo "Pilares”. Fascinante mundo paralelo. Ali, naquele Araripe imenso de chapada, era tudo de pedra. Um belíssimo lugar para amar. O frio seco da pedra era aquecido pelo fogo dos dragões do cretáceo superior, que somado ao fogo dela mesma, colorido, recorrente... Melina, La Violetera, a minha grande atriz M, que me ensinou o amor ouvindo Mozart e Cecília Meirelles. Sim. Eu era um gentil-homem, um belo espanhol de Salamanca, um pintor protegido pelo Príncipe das Astúrias (soube que recentemente presenteou o Presidente Lula com o último dos meus quinze "jardins” que pintei e lá deixei, durante uma das visitas recentes do Presidente do Brasil à Espanha de Zapatero).
 |
O Louco / Tarot / 1986 |
Grande bosta este homem chamado destino. Mas, como tinha me sido pródigo ao me colocar no colo aquela mulher tão atriz, tão mulher e ademais de boca tão extraordinária… e não só, de seios tão mimosos, de boca também tão linda, uma tinha os lábios caídos, a outra, esta de que vos falo, tinha a boca fina. Seios mimosos e lábios finos. Dancei e conversei com ela toda noite da festa. Mal sabia (e ainda não sei) quem era ela. Já no carro, de volta pra casa, ela me olhou de soslaio. Os cabelos!? Não. Já não me lembro dos cabelos de La Violetera. Lembro-me de uma foto que dela tirei, dentro de um carro, acho que em Berlim, ou Roma, ou Pequim, meio de perfil, com aquele mesmo olhar com que se me revelou pela primeira vez, e que seus cabelos eram ruivos, naquele dia, e que seu rosto e cabelo se pareciam com os de Katherine Hepburn. Bela, rica, filha do Rei, ela quase me arruinou. Foi o meu amor mais complicado. Mais impossível.
Um dia me disse simplesmente, em nossa cama de espaldar lindamente marquetada à francesa, horas depois de um haxixe, que a Liberdade era ser jovem e belo como eu. Tive vontade de lhe dar um presente. Mas, como presenteá-la, se eu não tinha um tostão, ou melhor, eu já havia gastado tudo. Bem, fiz-lhe um retrato. Um retrato que ela perdeu. Toda mulher tem um cocheiro na sua vida e ela perdeu o retrato que lhe fiz. O trocou por uns vestidos numa butique da Rua Direita, em Ouro Preto, sem que nem mesmo eu soubesse. Sem duvida a simplicidade é a mais cara das vidas e as mulheres ricas são sempre caríssimas.Pois como, como não explodir uma champanhe com uma mulher daquelas? Sorte eu e minha arte sermos o espaço e o além do espaço e eu ainda poder superar o dinheiro-diabo, este dinheiro, que não tem nada de dinheiro e nem de diabo. Este homem, este dinheiro. Fiquei treze anos no mato, sem eletricidade, telefone, televisão, burro que sou, e somente para entender isto: este homem não é o Homem. Este dinheiro não é o Dinheiro. E eu, feitor de sonhos, podia cunhar meus próprios dinheiros. Ora, sempre quis roubar um banco. Meus amigos dizem que é melhor eu ficar pintando, que eu ganharia muito mais. Mas, já pensou, purificar todo o dinheiro de um banco, de uma só vez. Pegar o dinheiro do Itaú, por exemplo (que anda espoliando os artistas, aliás como os outros, e fazendo muito mal pra Cultura e as Artes) e deixar no grande cofre uns Araripes enrolados. Se fosse preso, eu mesmo poderia me formular um parecer, não de roubo, mas de troca, por exemplo. Mas, pobre banqueiro sem um amigo artista.
Sim, imaginem, ela ali, Melina, nua, e quase de graça. Era só roubá-la e não ser palhaço (palhaço, o que rouba o coração de uma mulher?). E digo quase de graça porque no fundo temia (na verdade, me apavorava) que Dassin me matasse; ele já havia feito isto muitas vezes, em seus filmes terríveis da fase americana e européia, o escabroso, belo "cinema noir” -, e eu tremia ao pensar que ele pudesse não gostar de mim, afinal… mas, estranhamente, ele gostava, e parecia até que muito. Um grande homem digno, é a minha conclusão, além de inadjetivável cineasta. Um dia ele me pediu que eu lhe tirasse umas cartas do meu tarot libertário. Disse-lhe que fosse às 15 para às 11 de segunda-feira, 19 de maio de 1968, ou 1999, não me lembro bem, à minha página www.oscarararipe.com.br e fizesse o seu jogo no meu infalível tarot instintivo. De antemão lhe disse que tudo que aprendi ou vivi com La Violetera estava ali, naquelas cartas, refletidas, que meu amigo Oscar Araripe havia há anos pintado e que tanto enciumara a Picasso, aquele fauno-pintor, pesadamente erótico.