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Ouro Preto / 1990 |
Feliz o artista que improvisa. ... No fundo, no princípio, no fim creio que foi tudo improvisação. Thelonius Monk, os repentistas do nordeste do Brasil. Foi o jazz, ou Patativa do Assaré, que me revelou a improvisação, ou a arte dentro da arte e que fazia a cor florir. Thelonius improvisava. Patativa era Alencar. Belo macaco artístico, passarinho das mil e uma noites. Que lindos repentistas, que rica pobreza, que arte extraordinária. Inexistia a fórmula, só o enredo, estórias para se por em quadrinhos. Foi assim: a arte, madrinha-amante do homem, futura mãe da pessoa, um dia acordou no meio do sono. Como era noite estava escuro. Havia porém uns pontinhos luminosos no breu. A lua parecia uma estrela, só que nossa, por estar muito perto, pessoal, a uns 5 quilômetros a leste, estrelada. Quando pintei Ouro Preto, o céu, tragicômico de opereta tinha, contudo, o chão riquíssimo -, bem, eram dias luminosos, de verão cearense, de uma tarde em São João Del Rei. São João - os sinos tocam e as tardes passam rápidas.
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Tiradentes, o Animoso Alferes |
Pois, pegaria minha viola de arame e bardaria melodiosamente aos brados a estória de Tristão e Ana Araripe, depois Triste de Alencar Araripe, como já disse, creio: era um amor para se cantar. Pintaria Ítaca no Araripe, e resplandeceria a Chapada de muitos sóis e incontáveis luas. Caiçaras de Exu, foi-se o mar e restou o Araripe, fossilizado. Ora, eu pintaria Bárbara de Alencar e todos aqueles lugares conquistados por Tristão -, uma cave no Village dos anos 60, a proteção dos fósseis de Santana do Araripe -, e tudo parecia dizer: a pintura era uma arte só. Primeva, arcaica e só - e só me restou um átimo de saber, pois todo o resto era improvisação, ou arte artistizada, só que minha. Resumindo: Havia uma arte, e também a improvisação, e estas eram as minhas artes. Mas, que arte maravilhosa esta que não a minha, e que me permitia, na verdade, pintar como pintor. Estou certo que o maior pintor do mundo trocaria de bom grado todo seu verde e amarelo pelo negro total desta arte inicial que, aliás, pintei. Em preto e branco. Tudo unido, pessoa e natureza, homens e bichos. ... Então o meu lampejo inventou (para depois, milênios depois, o criar) tudo que você vê agora, coisas mais que perfeitas e também muito nojentas de vermes carniceiros. Mas, seria improvisar, apenas isto? Que fronteiras separavam aquele mundo do meu, ou melhor dizendo, aquele homem daquela pessoa? Ou não haveria mesmo fronteiras, como ademais, tudo -, tudo que se esvaísse na fragilidade do nosso ser aprisionado (Dir-se-ia ter se ido a Ditadura, mas tudo que a sustentava permanecia imexível).
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Tiradentes / Joaquim José da Silva Xavier / retrato ( detalhe) / 1990 |
Enfim, o que diria o pincel? Sinceramente não sei. Na minha experiência de pintor excêntrico e autodidata, era preciso a respiração rítmica, improvisadamente arrítmica, a que chamaria "Promenade des Anglais”, onde andar era como dançar, traço por traço, tinta por tinta, só assinando quando o desenho e a pintura fossem um só -, e perdessem o sentido, e a vida colorisse a tela. Ora, ora, um quadro acaba quando se assina. Mas, este é um mundo de quadros apenas começados, um mundo quase todo por fazer -, uma verdadeira promessa indecente, a nos fazer capazes de ver o mundo infravermelho, o trans-violeta, e todas as paisagens que faremos tão somente para ver. Ver, esta compulsão. Feliz (e dolorido) o que vê. E aqui, em nome dos pintores, agradeço aos micro-bioquímicos que estão pondo cores onde ainda reina o negro breu, como nós, pintores das luzes, sempre que descobrem novos seres minúsculos. E assim devíamos também analisar a boa pincelada de um quadro -, com certeza muito se aprenderia sobre as origens e permanências das cores, e mesmo um pouco do futuro da vida, pois nada está mais próximo das cores que a vida -, morre o homem e ficam as cores (e a pessoa das cores). Assim, para tanto, apenas para formular, desculpem-me, recomendo o jejum. Faça como eu, jejue até morrer. Mas, vá aos poucos, saiba quando saltar. Não se deixe matar. Primeiro coma só arroz integral com gergelim e sal marinho por etapas de uma semana, um mês, um ano... e aqui é recomendável abandonar o jejum. E se você é um leitor que procura dicas para poder pintar, digo-lhe que nunca mais faça jejum. O mesmo diria em relação ao vegetarianismo. Coma só vegetal, e mel (para se enfezar um pouco) por 30 anos, não porque não queira morrer, mas para poder ser ético. Não coma os animais por ética. Observe que neste período não deixe de respirar, mas procure repetidas vezes não respirar, até quando não mais agüentar... mas cuidado. Não morra. Improvise mas não morra, e não deixe de tomar água. É a água que aproxima os pigmentos das tintas à vida da arte do pintor. Assim, muita atenção com as águas, principalmente as nossas, que ao lado do nosso ar, foram duas das mais belas criações da arte. Da arte sem artista. Enfim, precisamos urgente cuidar das nossas águas e ares, sob risco que sermos uma terra sem pintores numa época em que a imagem está moldando o mundo como nunca, e ao seu bel prazer. Nem um milímetro de campo para a imagem que em 15 minutos de fama condena o homem à má celebridade de todo um século. No futuro, em trinta anos, todos serão publicados e famosos para sempre. Vaticino.
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Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes / com o pintor /1990 |
Mas, convenhamos, que "Poderoso caballero es Don Dinero”, como disse Francisco de Quevedo. Não, não choro. Grito, no silencio da minha pintura e, às vezes, com meus leitores, com quem gosto de gritar. Nada mais. Sempre quis ser o que sou. E existe coisa melhor do que ser um pintor e viver bem ou mal de sua arte? Melhor do que isto só dois disso, ou seja, só se o mundo fosse melhor. Eu não reclamo, mas pinto reclamando, o que é diferente. Aliás, nem poderia ser diferente. Um dia, num de meus belos dias, ainda vou assaltar um banco, o meu sonho de infância, juventude, maturidade e velhice. Gostaria o amigo leitor de ser meu cúmplice? Poderíamos dar o dinheiro roubado, já purificado, para a Fundação Oscar Araripe. Acha certo? Estou querendo o que é meu, e que me foi negado, entendem? Mas, na verdade, nem isto -, ficar rico com o dinheiro purificado me interessa mais. No fundo, espero uma proposta, indecente que seja. Que Lúcifer me proponha como a Fausto. Dar um pouco de milho às pombas… as pombas da Plaza de Mayo. Bem sei, sou pela indecência das propostas! Enfim, sou decente, e meu valor é ser pintor, pintor faroleiro. Mas, sinceramente, aqui neste Farol infernal, onde fui até feliz, não se tem tranqüilidade, o barulho é muito e está acabando com a Bahia e eu não tenho salário fixo no fim do mês. Estou desempregado há 30 anos. Felizmente, aos poucos, estou dando valor ao imundo dinheiro, ainda que minhas mãos sejam só virtudes (quando lavadas). Sem dúvida, a imortalidade é a mais indecente das propostas num mundo em que tudo, como os yogurtes, têm data de validade pré-fixada.