Oscar Araripe - Minha Vida de Pintor / VII

Minha Vida de Pintor / VII

Acridoces tempos da minha juventude. O que era ser feliz? Jamais me perguntei e jamais também pensei em suicídio e talvez por isso tantos anos depois eu me tornei, sem nem mesmo o saber, um pintor de radiante alegria, fato reconhecido inteligentemente pela unanimidade de meus amigos e apreciadores. A unanimidade nunca é burra. Minha pintura, em contraste com aquele mundo de trevas, daquela Inconfidência que não dera certo e daquele fervoroso conservacionismo de Ouro Preto e de toda Minas, de repente, como num facho de luz mostrava a liberdade, a clareza, as volutas sensuais, a linha das montanhas barrocas, nossas ondas internas, berço da nossa cultura. Como? Como se suicidar se naquele momento eu estava vendo um lindo tucano voando?

Fui e não fui, e não sei se fui feliz. E pra que saber? Aqueles eram tempos muito difíceis para os jovens sonhadores, talvez até mais que hoje. Ontem mesmo haviam matado 50 milhões de pessoas numa guerra onde os vencedores não eram nada melhores que os vencidos. A pessoa, o personalismo, o universo da pessoa, o combate ao individualismo, eu tinha mesmo que reviver aquilo. Mesmo que ali naquele mundo em que nada dava certo, de guerra sem fim e péssimos combates, eu tinha que reviver a pessoa. E, pensando bem, os meus foram todos tempos de guerra e eu como todos os meninos pobres e assustados tinha a minha disenteria persistente, o meu péssimo desempenho escolar, as minhas brigas domésticas e na rua, na escola, ufa! Eram escolas terrificas... e a mim só restavam os sonhos, e assim eu vi que podia com facilidade e em várias situações transformar o sonho em realidade; daí eu amar a realidade. Ainda sem o saber, inventava realidades e sorvia-me delas, em tudo, sem medo nem consciência. O ruim eu sublimava, o bom eu brincava e assim acreditei desde cedo em idéias e ideais. Tudo de bom eu fui; fui e sou, e ainda sonho em libertar a Califórnia, vestido de negro, com o meu cavalo prateado, e numa pausa tomar um uísque em Templenton. O meu peito é ainda de aço e eu continuo voando por aí, socorrendo e fazendo olhos. O pintor, o fazedor de olhos.

E eis aí a Pintura, a mais bela das artes, a mais livre, a que mais fica, a que mais silêncio grita e a que mais pessoalidade exprime. A música, a representação são efêmeras, mas um quadro pode estar ali sem reprodução. Esculpir uma estátua pode não ser elegante, exige força e algum barulho, mas a Pintura é silenciosa e o silêncio é o mundo dos antepassados, e eu posso ser Tristão Araripe, meu amado pentavô, herói da Confederação do Equador, dono de letra bonita e esclarecida; posso ser Bárbara de Alencar, minha amada hexavó, heroína do Ceará, Mãe da Independência e da República brasileira, mulher bondosa (perdoou os assassinos dos próprios filhos), primeira presa política do Brasil e que aos 63 anos retratei - ela bonita e indestrutível, rainha-mãe dos nobres do algodão; santa e poderosa, e que pintei no momento em que saía da prisão, também aos 63 anos, após quatro anos de prisão; seminua, os cabelos desgrenhados (porém belos) e no exato momento em que recebe nos ombros o xale azul da Confederação, de sua escrava liberta (na verdade uma companheira de seu estado maior), e então ela se lembra da infância feliz na fazenda do Pau Seco - e assim eu a vi: a fazenda próspera, o solo com gosto cultivado e ao fundo a Serra do Araripe, que seu pai, Leonel, viu pela primeira vez de longe - "uma linha azul no horizonte”, disse. E eu podia ser o Cariri-miragem de verde, o Crato dos livros, Jardim, uma cidade-jardim e onde nos tempos da libertação perdemos vários Alencares assassinados. Pois sim; eu podia ainda que por instantes mas intensamente ser Araripe Jr., meu admirado tio avô, o maior crítico literário do Século XX . Mas podia também ser uma árvore (e devia sê-lo se quisesse retratá-la), o meu tio Jader, grande projetista de casas lindas e caprichadas e que retratava com perfeição a todos nós, numa arte chamada silhueta, e que não era Alencar nem Araripe - mas Castello Branco (não confundir com Castello Branco, o Presidente dos militares que, aliás, era também Alencar). Família ilustre, como se vê, e que em verdade pouco sabe de toda sua grandeza; desses vários escritores e pintores,desses amantes famosos e de toda esta misturada brasileira, agora também eletrônica, tais as ramificações e que tantas que já nem as sabemos. Brasil, um país jamais país. E pra que país? Ora, imagino que já na meninice eu soubesse que tanto os peixinhos daquele rio sujo como as estrelas daquele céu de balões eram minhas extravagâncias necessárias; e que também eu podia ser uma extravagância naquele mundo entrevado. Cores, luzes, cristais, reflexos, tudo concorria para iluminar e mesmo as luzes malignas iluminavam e, fosse um brilho nos olhos, uma cor nascida na tela, uma cor tornada existente, fosse o que fosse, um tucano barulhento e voante, um filme americano numa matinê no Cine Engenho de Dentro, ou uma história em quadrinhos, eu buscava em todos os lugares as cores como minha esperança de vida. Ali estava o mundo mau, da morte mesmo, da morte à-toa, e ainda que eu soubesse ser a vida a mãe de todas as coisas eu me agarrava à arte, que já naquela época eu suspeitava ser a mãe de todas as vidas. Como um prato de arroz, um ovo cozido, uma colher de feijão, eu precisava das cores. Arte, vida, cor. Jamais esquecerei a pipa que eu mesmo fiz de papel fino amarelo e roxo. Amarelo, verde e roxo, agora me lembro. Talvez fosse meu primeiro quadro. Mas, onde, o meu museu imaterial?