Flores. Rendo-me a elas. Capitulo, quedo diante de sua beleza, sentido, hospitalidade. Nada digo. Sintetizo a síntese. Nacional, internacional, cosmonal. Primeiro: a arte e o talento. Gênio não é aquele que copia e transforma. Segundo: Gênio é o tema, o trabalho no tema. Só sintetiza quem, após realizar tudo, haja por bem só fazer o mais difícil que lhe é mais fácil. O preguiçoso eu. Ou se pinta ou se escreve. Não existe grande pintor escritor nem grande escritor pintor. Embora exista. Nem mesmo Cristo foi Deus e homem. Era filho, não pai. Não pintou não escreveu. O gênio há de se contentar com uma só sinfonia, um só oratório, uma só sonata, um só bolero. Guignard pintou Ouro Preto e como Fra Angélico só pintava anjos. Di Cavalcanti - diz-se, escrevia tão bem quanto pintava. ... mas escrevia muito mal, dizem. De que valem os belos textos de Di Cavalcanti face às suas belas mulatas? Tivesse Guignard pintado Tiradentes e todos diriam: que paisagem é esta de Ouro Preto? Enfim, gênio é quem depois de fazer tudo resolve fazer uma coisa só. Ou seja, se posso pintar Jesus Cristo ou uma pêra, brilhantemente, o que o povo prefere? Pêra, Jesus Cristo? Eu prefiro Flores. Pudesse eu só pintar nuvens... mas, olho o jardim do céu, e pinto flores.
Nada mais revolucionário que um jarro de flores. Novidade? É flor que não é flor. Nada de estripulias imaginativas, museus ciclópicos, instalações escandalosas, crueldades, porcarias. Flores, flores sim fazem um bom pintor pintar. Flores para los vivos e para los muertos. Flores para receber com flores, flores para hospitalizar, flores para lembrar de flores. Eu pinto flores para lembrar os sepulcros que enfeitei, dizia Guignard. Pinto-as, portanto, para sentir-lhes o cheiro no meio da noite, quando os apitos do trem já se vão longe, surdilongínquos, perdidos. Flores, flores que não são flores. Pois sugestões são mais flores que flores. Em pintura, querido amigo, valem iguais as flores e a toalha que recebe o jarro de flores. Uma toalha bem pintada vale por muitas flores. Falo de flores, sempre e portanto: para que pintar Tiradentes, se já tanto a pintei ? De que valem meus mil abstratos (que aprendi a chamar de subjetivos), se não são flores? Para que marinhas se há tempos deixei o mar, essa coisa de navegar? Eróticos, meros papéis? Na tela? Tesão? Erotismo de anão. Não. Eu pinto flores para que o povo me saiba o cheiro. O cheiro do mar, da Serra de São José, de Tiradentes, a visão perfumada da minh’alma, cheirosíssima e bela.
Um dia, uma vez lá em Cuba, ao invés de dançar uma rumba, pintei uns jarros de flores. Flores Cubanas, as chamei. Dei um jarro para Fidel, outro para o meu amigo Vicente Botin. Fidel disse querer tê-las à vista quando de seu derradeiro suspiro. Lindo Fidel. Pinto vida – disse-lhe, estarei por perto em seu leito de morte, meu querido anti-norteamericano . Vicente, meu bom amigo espanhol, tão educado, agradeceu dizendo que o aceitava com mais valor, por ser eu um pintor profissional. Não entendi muito bem. Mas, entendi. Queria dizer que doar algo que se podia vender, tinha mais valor. Penso nas flores, ao invés dos milhões tão irreais das irreais finanças americanas. Disse-lhe então, amigo, só um pintor pode dar presentes assim tão caros. Mas, tolo eu, devia tê-las vendido todas. Não dar, nem rosa, nem jasmim. Teria isto sim lhes dito que a Bienal de Havana era uma farsa (farsa vazia como a Bienal de São Paulo), que a profissão de pintor só me servia para me negar a escritura, os gritos de meus manifestos, meus livros negados, todos sabotados. Sim, todos meus editores, a própria imprensa, meus leitores, todos me sabotaram. Feliz eu, pintor de anjos, que tive minha pintura amada, minhas flores reveladas, pois flores são mais flores quando já não o são. São as flores que virão. Imurcháveis, se me permitem. Vaticinosas, sexuosas, revolucionárias flores do meu pincel.
Com certeza já disse: revolução em pintura é pintar um novo jarro de flores. Pois saibam que de qualquer bom pintor, é o tema que mais valoriza. Comprem um jarro de flor (de um bom pintor) e serás rico para sempre.
Bem, para não dizer que só falei de flores, falo hoje de sínteses, de falos.
Sintético foi Matisse. Pintou um só quadro, depois de pintar vários. Dele somente lembro suas três graças creio que rosas, dançando de mãos dadas, no ar das coisas nenhuma. Lindo. Dufy, sintético e elegante, pintou palmeiras do Brasil, sem nunca ter vindo aqui. Pintou palmeira de Cuba sem ter nunca estado lá. Que lindas as palmeiras de Cuba! Terra das palmeiras, a pindorama brasileira seria muito mais pindorâmica se tivesse transplantado palmeiras cubanas. Lembro-me de uma sesta irresistível sobre um banco deitado com a cabeça nas pernas travisseiras de Cidinha, após um almoço em Trinidad de Cuba. A política corria solta entre os artistas participantes do Festival do Caribe, onde apresentei meu Repetróglifos Caribenhos, no Parque Céspede. Amava o parque, detestava o Festival. Gostava de Cuba, de Hugo Chavez, da inclusão caribenha, mas tão só como artista. Como artista eu só gostava de flores e as flores eram o meu partido. Como Oscar eu me permitia ser isto ou aquilo e votar por isto ou aquilo. Mas, como artista, eu só votava nas flores. Irritava-me o assédio dos maus artistas pelos maus políticos e estes por serem assediados pelos maus artistas. Lá pelas tantas um substrato pintor apresentou em pleno palco da solenidade de abertura do Festival um retrato do Ministro da Cultura da Venezuela, extremamente pintado por ele. Outro pintara Marti, José Marti, o herói, e o oferecera a Hugo Chavez, que, aliás, nem estava lá. Pensei: não, jamais daria meu bolivariano retrato de Tristão Araripe a Chavez, ou o de Bárbara de Alencar a Fidel, por mais bolivarianos que fossem os dois heróis brasileiros. Dar-vos-ia flores que não são flores em vasos que não são vasos, sobre toaçhas que não são toalhas. Flores, flores para ficar. Chavez, meu eterno presidente venezuelano, saibas tu que estarás vendo minhas flores quando cantares o elogio fúnebre de Fidel. Tomara Vicente esteja por perto. Poderá lhes falar das flores araripinas, das palmeiras transplantadas, das lindas cubanas não tão belas quanto Cidinha, minha bela cubana minha, natural de Catas Altas, Minas Gerais.
Síntese é Dufy, meu artroso pintor preferido. Nascesse depois de mim e teria pintado como eu, embora não me agrade pintar instrumentos musicais, como ele. Portinari teria feito somente retratos, retratos de Maria, de Denise, de João. Guignard teria pintado somente as luxuosas sambistas da Escola de Samba Inconfidência Mineira. Eu, pobre eu, pintaria só flores, para dizer, conforme diria, eis aqui senhores as moças de botões de rosas a excitar os sátiros como eu. Rosas sim, que um dia colhi nos jardins dos fundos da Notre Dame, Paris – para dar. Dar que um florista não precisa de pagos, não precisa de nada. Só pintar – dar para pintar, e nada mais.