Pintar é como escrever, fazer dinheiro verdadeiro e trocá-lo por falso. Eis aí uma boa  imagem da minha vida de pintor. E não pensem os senhores que o dinheiro está em todas as artes. Talvez esteja, mas, veja o cinema. Procuro, procuro - sei que disfarço a vida, mas, perdoe-me os cinéfilos, o cinema não tem vida. Tem animação. Vida mesmo, a imagem da vida, só mesmo a pintura possui. De modo que fazer dinheiro verdadeiro seria o meu trabalho e purificá-lo a minha missão, e, em se assim acreditando, a arte teria a função de purificar o dinheiro. Prefiro vender um quadro barato a perder a ocasião de purificar um dinheiro falso. Principalmente quanto está nas mãos de um amigo. Belo paradoxo. Uma missão de Síssifo, diga-se, como todas as grandes missões, aliás. As cores, portanto, parafraseando Federico Garcia Lorca, "non valen nada”. O que vale é a arte. E a vida é um "poço chico”. Cabe à arte aprofundá-lo, enriquecê-lo de água potável. É preciso furar um poço no quintal, se se quer ser um bom pintor.

 

Bem; "eu tinha vinte anos e estava apaixonado".
Há anos escrevi esta frase, talvez a minha melhor frase, e tudo que pintei foi por ela. Mesmo antes eu já pintava, sem ser pintor e assim, pintando quadros de frases achatadas, rapidamente, vivi como uma frase, e tudo se passou com quatro, cinco rápidas pinceladas. Via cores que não eram cores e queria torná-las reais, falsos reais, como disse, e assim pintava realidades inventadas e por elas via a graça no mundo. De modo que assim, anos depois, curiosamente, comecei minha vida de jornalista e esta, digamos, comecei pelo fim, como improvisado correspondente do Jornal do Brasil em Roma. Eu tinha vinte e poucos anos e havia ganhado uma bolsa de estudos de jornalismo na Università Pro-Deo de Roma. Encurtando a história, eu me vi como inaugurando o escritório do JB em Roma e exercendo muito precariamente as funções de correspondente, em pleno 68, que eram  enormes e várias, incluindo viagens  e "salamalecos", ou sejam, relacionamentos que sistematicamente significavam uma ida ao aeroporto para pegar uma pessoa importante e combinar um almoço ou jantar. Jornalismo mesmo era pouco. E o que era pouco durou pouco. Pois logo o Araújo Neto tomou o meu lugar e nunca mais o largou. E devo dizer que exerceu as funções muito melhor do que eu. Ou seja, minha eterna indisciplina, minha mania de delegar e rapidamente me tornar dispensável, de ser naturalmente um descobridor da pessoa, de pessoas, enfim, tudo isto acabou por me tornar um escritor que vive da pintura, da minha pintura. Mas, voltando à Roma da Fontana de Trevi, minha vantagem é que eu falava bem o italiano e destaco à época o meu alumbramento pela Primavera de Botticelli, pelo David de Michelangelo, pelo cavalos de Giotto, pelas cores de Raphael, pelos pretos de Gutuso, as garrafas de Morandi... mas o que mais me impressionou foi a Pietá de Michelangelo. Jamais vi carne tão bela e tão morta, tanta piedade e pujança de sentimento. Pintura e teatro. Pintura é teatro. Ainda pintando sem ser pintor,  eu amava mais o teatro. Spoleto, Veneza, Milão, Agrigento, Epidauro... Pompéia, creio que ali, numa bela tarde, sozinho numa viela deserta, eu representei para mim mesmo o monólogo de Hamlet, olhando o Vesúvio, estranhamente quieto naquela Itália da contestazzione.

Na Muralha da China, durante a Revolução Cultural / 1974

Depois, rapidamente, trabalho perdido, amores vencidos, regressei ao Brasil e  fui repórter, crítico teatral e literário do Correio da Manhã, do Jornal do Brasil, de Última Hora, editor, dono de jornal, redator e finalmente repórter especial. Depois, publiquei dois livros e deixei o jornalismo. Fazia tudo brilhantemente, mas desenvolvi uma adrenalina nas palmas das mãos que me fazia suar e fumar cigarrettes um atrás do outro, o que me fragilizava diante do poder poderizado, pois ainda acreditava que pudesse ser rico e famoso, digamos, normalmente, corrompendo-me mais ou menos, tudo normalmente. Rápido engano, pois a vida corria célere e eu nem me dava conta do que a realidade estava fazendo de mim, ou o que ela pudesse fazer, caso não fosse eu a fazê-la.
Ou seja, fico pensando o quanto não devo ter sido ousado e sortudo para conseguir tudo isto, pois capacidade com certeza  eu não tinha. Eis o mistério da juventude. Fazer bem sem ser capaz.
Enfim,  fui um perdedor o tempo todo, com muita honra, pois fui perdendo todas as glórias e estabilidades que a vida me foi dando. Recebendo pouco menos que mereço, cheguei até aqui, na glória de um homem rico e sem dinheiro. Meu acervo de jarros de flores, paisagens, marinhas, valem milhões de reais purificados. Sou um pintor de sorte. Perigosa sorte.
Hoje,  às vésperas da calma conquistada e com as minhas responsabilidades e amores de pai, marido e amigo, vejo que tudo que ganhei foi com a minha pintura. Agora é dar a dívida como paga, pelo interesse social, da saúde e da cultura do povo do Brasil, e esquecer. Esquecer e só lembrar-se da grande revolução do Carnaval, conforme previu Promeu, o que amazoneu. Breve - dizia ele,  o Brasil será um país de contagiante alegria, que se espalhará pelos ossos escolásticos da Europa e finirá com o confucionismo capitalista chinês, atingindo Paris, a Bélgica. Brilhará o sol na Moldavia, a Itália se desamericanizará e se desitalianizará, e o mundo inteiro… ao dançar, ao pintar, tudo arcaico, novo, uma chance para o esquecimento deste homem, que não é o homem e que quero decididamente esquecer. Esquecer para poder pintar, fechar os olhos para pintar. Eis o governo do Poeta. O Docodema. O Brasil o Governo do Poeta.

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