Velásquez, caros amigos, penso em Velásquez. Sua mudez, seu silêncio, sua pintura só pintura. Nossas épocas se assemelham. Don Velásquez veio calando o palavrório inútil. Nada de som, ruído, simplesmente pintura, calada, caladíssima, como um grito suave e altissonante. Também hoje a pintura está cheia de preconceitos, estudos acadêmicos e pesquisas burocráticas, quase sempre colagens, colagens de colagens, onde o último colador já ignora o primeiro e nada sabe do criador. E havia ainda a imprensa dos preferidinhos, a plutoimprensa -, uma corte de bufões a saprofitar-se dos artistas (que se deixavam saprofitar). Velásquez não, pareava com do Rei Felipe, era seu pintor mais talentoso. Assim, eram iguais, ou quase, sendo Velásquez maior, já que quando se demorava na Itália, Felipe insistia pra que voltasse, logo, enquanto Velásquez nunca pediu a Felipe para que fosse à Itália vê-lo. Hoje, ainda que decadente, reina oficialmente, as "artes plásticas”. O pintor (certos pintores) tem vergonha de ser chamado de pintor para não ser confundindo,creio, com o pintor de parede. Imaginem. Estuda para aprender o que não se aprende na escola, e ainda saem da vida. Uma só pincelada tonta pode arruinar a carreira de um pintor. De modo que não se desaprende nunca, algo muito fundamental na formação de um bom artista. Hoje "forma-se” em pintura, faz-se carreirismo de exposições (nada mais banal e elitista que exposição de artes plásticas, hoje), faz-se a corte plutônica da mídia, emascula-se diante dos críticos que nem existem e não têm idealismo nenhum. Jogo de vaidades, nulidades, socialaitismos. Velásquez não. Ele era amigo do Rei, das meninas do Rei, decorava o Escorial, possuía as chaves de todos os cômodos… pobre época essa a nossa dos valores invertidos, sem "reis”, sem "papas”. E o que é pior: sem duquesas de Alba para Goya amar, vestir e desnudar. Grande duquesa, puta, aristocrata e rainha. Grande mulher do povo. Eram sempre putas as melhores rainhas e melhores diplomatas os pintores.
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| Arraial da Ajuda / Bahia / 2002 |
Mas, uma tela me olha. Está pronta. Pintei-a em dois dias, quatro horas por dia. Já havia esquecido dela. Matéria de sonho -, pensei. Realidade -, me corrigi. Pouco importa. Era uma história calada -, onde as árvores até então eternas pintavam o azul que ascendia da resina que evaporavam. Eu sabia ser ela a luz azul da Serra de São José de Tiradentes, sabia, pois de cima de sua areia branca de chapada e pedras esculturais eu via a minha minúscula casa e a frente envidraçada de meu estúdio, que o sol da tarde refletia. Era uma visão extraordinária. Uma audição inesquecível -, na verdade um silêncio de Velásquez. Perfeitamente, eu podia ouvir mesmo àquela altura e distância tão consideráveis o que minha vizinha Zizinha dizia para nossa vizinha Tunica. Diziam nada, conversa fiada. Barulhento homem, barulhenta natureza. Preferia o silêncio de uma pintura. Não bastariam meus olhos agressivos naquele auto-retrato pintado? Precisava eu repintá-lo? Não seriam melhor as borboletas? ...Em verdade, já não existiam jornalistas corruptos e sim donos de jornais corruptos. E a arte que a tudo redime. Queimar os livros? Melhor seriam os dinheiros.
Lembro uma linda queimada de Emeric Marcier. A minha, ainda inexistente, queimava dinheiros, cédulas, derretia as moedas. Mas nada disto se via. Como a de Marcier, a minha era uma queimada mesmo. Ele queimava o mato que aquele homem queimava. Já eu preferia queimar tudo. Mas, já não havia homem na minha queimada. Preferia as borboletas, embora Marcier também fixasse o imponderável. Tanto eu como ele precisávamos de um bom pretexto para usar o vermelho, um amarelo laranja de fogo, movimentar as labaredas, integrar o azul da mais fria chama ao mais quente dos infernos avermelhados e humanos. Queimar uma árvore... mas, pra que queimar uma árvore, em troca de um simples pretexto? ...Acredito que tal solidariedade tivesse me propiciado o entendimento da natureza humana dos vegetais e dos minerais, e que tal acidental façanha tivesse me aberto o discernimento. Não digo total. Parcial. Talvez mínimo -, já que creio muito nas mãos. Mãos que queimavam dinheiros -, dinheiros que purificavam minhas mãos e me permitiam pintar. Pintar bem. Mais que bem. Pintar. Pixit -, havia um gozo naquilo. Mas, nunca pintei por gozar. Pintei para ser alegre e não chorar. Para rir para todos, curar os enfermos, fazer milagres diuturnos, lembrar minhas ex-mulheres, rever os amigos, fazer novos e ampliar os filhos. Pintei para plantar árvores, fazer cair macãs, movimentar a paradeira do mundo. Um dia, num belo dia, como disse, de pronto, consegui tudo isto. Desde então meu ofício tem sido este.
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| Casa no Pacatá / Porto Seguro / Bahia / 2003 |
Rico, famoso, já com uma boa idade, lembro uma propaganda de uma loja de tintas de parede, no Rio de Janeiro, dos anos 50, que dizia ser a tinta quem fazia o pintor. Um relativista logo se apressaria em dizer que era o contrário, que o pintor fazia a tinta. Mas, acho que a propaganda estava certa. A tinta faz o pintor, que a transmuta em cores. Creio.
