O muito bom soe ser quando se deixa a literatura e se começa a pintar. É aí que surge a borboleta azul diáfana, ao lado dos azulões e das amarelinhas. Borboletas transparentes, de prata aperolada e suave irisdiscência. Lalique, a borboleta brasileira, jamais a esquecerei, embora tenha já uns 50 anos que não as vejo. Miríades de amarelinhas sobre as bostas e o mijo dos bois, na estradinha da Prata, no vale do mesmo nome, em Mirantão. Eu via.
Charles Baudelaire teria amado as borboletas do Brasil, as mais belas do mundo, sem dúvidas, mas sobretudo porque viramos um grande pasto e as borboletas mutam, juntando-se aos milhares nas areias dos rios e regatos, onde bebe o boi - , para sorver-lhe a urina, trombada tombra, numa fúria de cores vivas, já existentes bem antes do Homem. Ou seja, não foi o Homem quem inventou a arte...quando aqui apareceu vindo do peixe, o mundo já era das borboletas.
Diuturnamente, ficava horas e horas observando o vôo ilógico daqueles seres apressados, invejavelmente enebriados. Deviam posar ali mas posavam lá. Literariamente, a borboleta bem podia ser uma mulher especial, um amor de domingo, gracioso, juvenil, alguém que se metamorfoseasse para nos confundir a razão. Escrever era pintar com a razão, mas era também um sexto sentido, onde as palavras soltas nos diziam das almas e dos corações contidos nelas mesmas. Também era possível intuir que uma borboleta podia ser uma mulher esplendorosa, inimaginável e inexistente. Exceto na pintura, é claro. Aqui a borboleta era só a borboleta, sem maiores delongas, e eu devia escolher se a pintava como borboleta, casulo ou lagarta. Assim, pintar era como dar humanidade às borboletas, e eu ficava ali o dia todo, estático, esperando que aqueles lepdópilos me posassem na mão, para que os visse intimamente e perceber-se-lhes o sentido da leveza do peso. Olhar, então, era assim -, como o cérebro, afundava nos detalhes, e nada mais profundo que a superficialidade do olhar fixado. O universo, a China, a Amazônia só podem ser alcançados superficialmente. Assim, aqueles dias vagabundos pelas montanhas das Minas enganosas eram como pequenas aulas magnas, onde tudo era novo e transformador. Como um casulo, a razão virava fluição, verdades eternas, e as borboletas eram a lembrança da paisagem sem o homem. Pintada paisagem, ainda sem o homem. Pintá-las, portanto, tornou-se um tema recorrente na minha pintura, pois era como representar o homem antes do homem. Tudo que aprendi o fora com as borboletas, sabia. Do verão. Quando surgiam aos milhares, ainda mais belas e borboletadas e o campo se enchia de luz, cor, e era melhor apreciá-las sentado imóvel numa pedra de uma estrada de terra, numa passagem de água de riacho. Numa praia, como se diz em Minas. Aquele era o tempo só delas, e também meu, e minhas observações ficavam por aí, pelas asas fugidias. Olhava-as, mas não para pintá-las, pois à época ainda não era pintor, por puro prazer, na tentativa, creio, de roubar-lhes a alegria, pois eram a alegria do homem e eu queria a alegria do povo. Contudo, sempre preferi as borboletas. Pintei retratos de amigos, filhos, de heróis e heroínas, de minha amada Cidinha mas raramente pus o homem nas minhas paisagens. Pus para não dizer que não falei de flores. Pois pô-lo era como enfeiá-las, quando a beleza das borboletas era o seu maior sentido. De que valeria uma estrela se não fosse pra nada? Seria como inconsequentemente por o mal, e com ele o bem, na minha paisagem inviolada. Ora, não queria nem o bem nem o mal nem mesmo nas minhas naturezas-mortas, que dirá nas minhas paisagens. Minhas árvores seriam elas, jamais histórias ou anedotas, meus campos seriam para o passeio com os meus amores e sozinho, nas tardes bonitas, manhãs de saúde, águas para correr, de modo que eu, que comecei fazendo três mil auto-retratos e me representado pintando direto trepado nas rochas arcaicas da Terra, troquei as mulheres pelas borboletas e os homens os tirei da paisagem, ainda que com certeza os tivesse representando alados e belas cores fugidias, pois bela era a arte de escrever pintando.
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Lagoa com peixes nos arredores de Tiradentes / 2000 |
Um dia, sentado como descrito, à beira da aguinha limpa onde os bois iam beber, cagar e urinar, admirando absorto o vai-e-vem das asas coloridas, uma dessas criaturas posou-me na mão. Sem me mexer, olhei fixo em seus olhinhos, procurando ver se ali havia um olhar, senão humano, familiar, um olhar que pudesse me transtornar. Havia um homem. E de fato havia. Nada tinham de humanos, contudo, eram frios e objetivos -, comer, pareciam querer dizer, queriam comer, e no caso, chupar o sal do meu suor. Pintar, então, era desvendar palavras cifradas e assim o julguei tratar-se, pois pareciam dizer que se eu quisesse pintar borboletas como humanos ia fracassar. Devia pintá-las, tão somente, pouco importando se implicassem em presenças humanas ou não. Nunca mais as pintei com os olhos. Borboletas eram linhas, cores já feitas e estavam longe de serem borboletas, eram apenas pintura, e como tal, estavam mudas no silêncio da paisagem. Voavam sem fazer barulho, coloriam sem colorir, estavam ali indiferentes à minha presença. Enfim, minha grande mão de artista só o era porque estava suada. Borboletas eram presenças, como eu, mas tinham sentido, e o sentido, naquelas prosopopéias, raramente se mostrava, pois era preciso voar a imaginação das mãos e andar como um pintor de boas pernas, para poder alcançar as mais belas e novas paisagens, paisagens que eu mesmo ia passar a ver, agora que já existentes na tela. Aprendi isso; que não existem borboletas, e assim não só as podia pintar sem os olhos como as fazer de puro sentido. Mas, foi preciso muita observação, muito risco e muito traço, muita vontade de voar, de ser invisível e essencial-; ser uma borboleta e jamais pensar que fosse ela, pois ela, a mulher, pintada ou não, estava longe de ser borboleta. Pintar borboletas. Nunca mais, tão somente.