José Roberto Moreira de Alencar, querido primo JR. Li o Caldeirão do Diabo, do meu amigo do Rainbow Warrior, Richard Dawkins, que ganhei do meu amigo Roger Brown (Cônsul inglês em São Paulo por muitos anos), numa cuidada edição da Companhia das Letras, organizada por Latha Menon e traduzida por Rejane Rubino. Só notei uma bobagem, que gozei, criticando em alguns capítulos atrás desta minha vida de pintor. Não gostei quando o brightfriend de Oxford diz que se um extraterrestre visitasse a Terra não se interessaria por Shakespeare, e sim, imaginem! pelos nossos conhecimentos científicos. Diz também que Darwin está em todo universo -, o que não é nada crível -, mas esta é uma bobagem menor, e em que não me detive. Creio que a não inclusão da arte nas ciências, ou mais grave ainda, da ciência nas artes é o ponto que me interessa, ou seja, mostrar artisticamente que a arte a tudo precede -, pois antes de lê-lo já chegara a idéia cultural do olho, através de experiências próprias, principalmente nas artes da escritura e da pintura. A crença na não existência das cores, por exemplo, sua matéria artística, assim como a negação e dissolução de alguns basilares conceitos obscuros da ciência, como linha, composição, perspectiva, planos, pontos, traços, etc., progresso e infalibilidade, religiosidades, hoje nada mais são que artimanhas conceituais -, esta crença, repito, chegou-me pela reflexão do ato de pintar, sua excelência vital, o seu sentido, ou seja, constatei que a arte está na origem de tudo, pois tem a capacidade de fazer as realidades culturais, isto é, tudo. Um tudo sem nada. Ou quase tudo.
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Subida da Matriz de Tiradentes / para Ni Tsan / 1998 |
JR -, aproveitei a mensagem que lhe envio acima para encimar o texto que devo colocar amanhã ou depois, ou mesmo hoje, se der, pois clarifica (acho) muito bem esta questão tão importante no livro, qual seja, o valor da arte como, não somente transformadora, mas feitora e possível salvadora do mundo.
Há uns vinte anos pintei nas Itatiaias mineiras uma tela a que chamei Os Dois Irmãos. É um tema recorrente, na pintura, na literatura, a questão do destino que liga dois irmãos. Duas montanhas postas ali, lado a lado, inseparáveis, tudo que a tragédia podia trazer para as ligações sem desejo. Ora, eu não queria matar o meu irmão. Não queria viver por que ele morrera, viver depois que morresse, não, eu não queria isto. Tinha que traçar duas linhas em curvas poderosas o suficiente para criar dois morros, gêmeos, mas bem diferentes, semelhantes porém, vivendo para sempre enquanto durassem. Hoje, 20 anos depois, quando os palestinos estão mal sobrevivendo na maior prisão do mundo e os senhores de Israel se deixam usar e sacrificar pelos homens do dinheiro de todo o mundo, penso que minha tela Os Dois Irmãos possa eternizar enquanto dure esta idéia de irmandade, que tem que prevalecer, pois uma coisa é o destino que une dois irmãos e outra a paz do viver junto. Sem dinheiro.
Vejo, nesta tela que insiste sempre em me ver antes, que para tal, entre as vigorosas montanhas do desenho dos limites dos morros, no vale que se forma no interregno, um leito de rio que desce numa lógica de tempos imemoriais, e é onde crescem mais as árvores e reina o silêncio maior, capaz de suscitar um pensamento ainda não pensado ou uma imagem que viesse a existir depois.
Tenho medo do mundo. Como, pergunto, por esta canalha de Marte que difama Mercúrio de frente para minha tela -, parados, até entenderem do que se trata? Desumana humanidade, esta. Estupidamente formada, milênio por milênio, rude homem de pouca sabedoria, nada sabe e cre na ciência, nas superstições maiores e menores -, exatamente como fui um dia, e até recentemente, quando por fim percebi o quanto não era eu, e sim esse todo mundo que me legaram, sem que o quisesse e que agora pela arte procuro escafeder, criando imagem de essências e miragens transformadoras... mas, sem sofrer, sem sofrimento nenhum. Um quadro alegre, percebem, alegre sem que eu queira, pois hoje mesmo vendo este muito de tanta bosta geral penso que chorei. E as lágrimas, como disse, não podem cair bem num quadro alegre. Era zerar, mas... zerar? Zerar até quando? Até ver? Clarify, please. Quero minha cabeça plena de imagens que nunca vi, que me façam esclarecer estes senhores da guerra e do dinheiro do trabalho pago da nulidade da vida perdida nestas coordenadas pré-fabricadas, e que eles, inconscios, não vem na tela. Ou vêm? Creio que alguma imagem sempre fica... assim como a imagem que elucida a arte que me revela, sei quem sou, enfim, por ela e nela. Eu ali, o artista, conquistando a realidade... para separar o muito joio do pouco trigo, e fazer o auto-retrato perfeito, a figura finalmente figurada, sem códigos nem barras.
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Tiradentes depois da chuva / 1998 |
Eliane Reis, bravíssima editora dos Mineiros Uai, o melhor site de mineiridades artísticas e afins. Tudo bem. Passou. Como os morros, tudo passa e o pintor tem que ir correndo atrás da desaparição. Mas, será apenas isto? Seria então o pintor um atleta que andasse a correr com seu pincel em punho à caça de alguma diáfana donzela banhando-se no Stige (sic)? Sem dúvida, mas, apenas isto? Ou seja, também isto podia ser respondido de outra maneira, qual seja, seriam em verdade os morros que corriam atrás do artista. Uma procissão deles, morros como ventos, como ondas do mar e águas antigas que passaram por ali, morros que terminavam no céu e desciam em abismos de puro verde hook's green, e morros vermelhos paulatinamente roçados, queimados, pastados, e de águas evaporadas, e que me iam aflorando em imagens ainda não muito nítidas, mas... Sorteados pintores do Brasil que ainda podiam fazer paisagens inexistentes, morros pretos no azul do céu, morros nos pormenores do primeiro plano, morrinhos, pois seriam sempre morrinhos. Eram pintores felizes. Os homens tinham acabado com esta última natureza (aqui no Brasil talvez a primeira), e o que dela ainda restara afirmava uma opção pela Beleza, nitidamente, por parte da arte. O dinheiro acabava, o artista nascia. Ni Tsan, minha última duodecadeal paixão, fez tudo pequenininho, montanhas altíssimas, pesadíssimas, portanto, mas de delicada leveza e o que é ainda mais importante: pôs o mais pesado em cima do mais leve. Uma casa em baixo de uma montanha, por exemplo. E isto mudou o olho do mundo. As pessoas viraram bem mais pessoas e passaram a ver as montanhas e as casas como jamais viram. Ou seja, casa e montanhas como retratos de si mesmos, e onde a maior missão do pintor era a de por a cor em seus retratos, já que a imaginação era monotonamente em preto e branco esvaecidos. Jamais conseguiríamos conceber sequer a Lua sem esta sensível criação artística do grande pintor chinês do Século XIV, se não me engano, pois não sei se viveu antes ou depois de Cristo. Cito isto porque explico. Explico porque pinto, ainda que a pintura preceda à explicação. Mas, na frente explico. Atrás sustento.