A realidade, artisticamente falando, é um lugar pantanoso, escorregadio, enganoso-, não é nunca uma terra chã. Não digo que a realidade não seja real, mas quase digo, pois tenho vontade. Por certo que seria impensável um mundo, artístico ou não, sem ela. Mas, cuidado com ela. Alguns artistas dão-lhe status de natureza, outros pensam que ela, e tudo mais, possa ser criado pelo homem. Pelo homem artístico. Inclino-me por esta.

Tiradentes / Arredores com Serra de São José / 1998

Quando visitei a China, em 74, durante a Revolução Cultural, Confúcio andava meio em baixa e era até perseguido, ainda que já fosse cadáver de muitos séculos. Suas idéias relativas à supremacia do homem sobre a mulher, da cidade sobre o campo, principalmente, eram consideradas erradas e prejudiciais ao desenvolvimento do país. Estas duas idéias, a despeito da propaganda ocidental, eram as verdadeiras razões ideológicas da Revolução Cultural. Também a famosa historinha da vitória do Imperador Amarelo sobre o Vermelho, ou vice-versa, não me lembro bem, também já estava sob suspeição. O respeito aos anciãs, o culto aos antepassados e, sobretudo, a superstição, elevada  à altura da religião, contudo, pareciam intocáveis. Combatia-se Confúcio mas, mesmo combalido, Confúcio vivia onipresente no quotidiano chinês. Lao Tse era mais sábio, mais atual até, mas Confúcio parecia sintetizar o substrato mais profundo da cultura chinesa, que naquele momento estava sendo posta em questão. Ele dizia: "Um homem comum maravilha-se com coisas incomuns; um sábio maravilha-se com o corriqueiro”. Enfim, uma sabedoria assim tão magnânima não podia ser apagada de uma cultura, ainda que esta mesma cultura estivesse sendo apagada por sua própria cultura. Passou a Revolução Cultural e, ao que parece, Confúcio ficou -, até quando, não sabemos, mas a China de hoje, ao que sei, é mais confuciana que nunca. Lao Tse, contudo, está à espreita.

O que diz Lao Tse? Estranhamente, nada. Quase nada. Lao Tse é para os poetas excêntricos e os filósofos artistas. Fala de elevação, de nobreza, do homem possível e desejável, atento ao corriqueiro e ao inusitado. Sutilmente Lao Tsé parece estar em tudo, mas em tudo que é artístico. Se Confúcio tem o pé no chão (mesmo que afunde no pântano da realidade), Lao Tse flutua na essencialidade da arte. Se um maravilha-se com as coisas corriqueiras mais que com as incomuns, Lao Tse, um pensador incomum, maravilha-se com tudo. Sem dúvida foi mais artista que filósofo, ainda que a filosofia muito deva a ele no passado, no presente e acredito que muito mais no futuro.

Digo isto, em intróito tão longo, porque creio, por experiência própria, que o artista possa ser mais feliz (e alegre) se deixar-se levar mais por Lao Tse que Confúcio. E mais ainda deixar-se guiar por sua "barriga intuitiva”. Tudo bem que um lírio no campo possa ter maravilhado Salomão mas, um artista, por mais confuciano ou taoista que seja, não deve se deixar levar pela beleza de nenhuma flor. É arriscado. Melhor é tirar a beleza das próprias entranhas, mesmo que sejam "belezas terríveis”. Às vezes penso em pintar uma enorme mancha vermelha de sangue e homenagear estas pessoas que se explodem por uma boa causa. Só não pinto porque me repugna a morte, qualquer que seja. Respeito, admiro a coragem mas não pinto a morte. A morte que é morte mesmo.

Inteligência e consciência, eis o nome do jogo. O que as possibilitam? Respondo : a inteligência, creio, mais alguns anos, estará desvendada. A consciência, acho que nunca o será totalmente. O que faz uma pintura inteligente? Primeiro, o seu objetivo. Foi conseguido? Segundo, seria este objetivo algo novo, de bom-senso e de abrangência ampla ou geral? E a Beleza, a Justiça? Não seriam elas a própria inteligência? ... Esta malfadada sociedade "relativista” em que vivemos, na verdade, hipócrita e medrosa, insiste em "relativisar" tudo que devia definir-se. Mesmo que a verdade seja assumida por um minuto para depois se afirmar uma nova verdade, mesmo assim, a preguiça mental a rejeita. Imobiliza-se para reinar. É um mundo de reizinhos assustados com as mudanças. Misantropos reis. Vade retro, pois. Continuemos: a consciência e a inteligência parecem mesmo a matéria da mente, e esta, quase certamente, é uma atividade cerebral. Não creio que "fantasmas” a guiem. Alma nenhuma é substantivo, deveria ser adjetivo. Creio que um dia ainda o será, assim como espírito. Mas, o mistério, este problema informulado e não resolvido, existe. Como a realidade, é enganoso, mas existe. Quem pinta quadros viventes vê-se surpreso a cada pincelada. O olho e a mão nos mostram sempre este "mistério”, e a inteligência e a consciência o atestam a todo o momento. A pessoa do pintor parece ser "coletiva” e trans-humana. O umbigo, criativamente falando, é um órgão universal, de onde ele, o artista, "tira” ou "expõe” sua arte. Assim, inteligência seria informação e consciência apreciação. Mas, não só. Visão, reflexão, opção e ação, certamente, mas não só. E este "não só” seria a própria razão da existência da arte, o que ela almeja. Pintar, não a vida "mas” com vida seria a natureza humana da arte. Arte e consciência -, portanto, já que a inteligência (não somente a racional, mas a intuitiva) é a essência da arte. Uma flor pode ser uma flor mas isto não basta para que seja "inteligente”. Em verdade uma flor não é inteligente. Pode-se notar, não necessariamente, uma inteligência seletiva natural na formação de uma flor. Mas nada mais do que isto. Então por que o pintor (e os seres animais) são inteligentes? Ou melhor, por que os animais são inteligentes e os vegetais (ou mesmo os minerais) não o são? Bem, inclino-me, forço-me a crer que são. E aqui reside meu interesse pela arte. Pinto, logo pergunto: então o homem seria o único a ter consciência, já que a inteligência, por mais que o digamos, não nos é exclusiva? Custo a crer. Sei tão-somente que consciência, por mais justa que seja, não basta para se fazer uma boa pintura.

Flores para los vivos / 1995

Miro o meu arquiavô o pintor das cavernas e minha consciência se irmana com ele. Como disse, faço uma escada de tronquinhos de árvores, escolho uma pedra (no meu caso ao ar-livre) bem plana e escrevo lá umas artes -, enquanto penso. Pinto e penso como se não estivesse pensando, e quanto mais o jogo me abstrai mais me surpreendo com seus resultados. Lanço os dados e todos os números me são favoráveis. De modo que sou forçado a concluir que a arte tem inteligência e consciência próprias. Diferentes, portanto, das biológicas (e outras), comum às demais formas de vida. Uma aposta, portanto, da arte -, pois de que modo poderíamos "fazer” realidades e ter idades mais longevas do que a própria vida? A arte, enfim, precedia à seleção natural... e, por favor, não me venham ver nesta afirmação nenhum fantasma, nenhuma alma genial (ou mesmo estúpida, pouco importa), nenhum espírito luminoso e iluminado. Pois, a arte faz a seleção natural. Como!? Haveria, então, alguma arte na evolução da vespa icnêumone, que paralisa a lagarta e põe ovos dentro do corpo da vítima para que seus filhotes a possam ir devorando aos pouquinhos? Claro que não. Pode haver cálculo. Mas cálculo não é arte. Pode haver experiência, sorte, não isto ainda não é arte. Nem Napoleão nem Alexandre eram artistas. Não há arte fora da ética. Arte bélica? Não acredito. Um estrategista pode até ser brilhante, mas não existe arte na bélica. Também a arte aplicada -, uma costura, por exemplo, por mais bela e destra que seja, não deve ser chamada de arte. Ou seja, a arte faz a seleção natural mas não é responsável por todo o processo. Nem tudo que reluz é ouro e nem tudo que balança cai. Seria como uma tacada de golfe. A tacada é a arte mas a trajetória da bola vai depender de muitas coisas, intensidade, condições metereológicas, terreno,etc. Cuidado com a realidade. Pinte-a de olhos fechados.

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