João, meu bom amigo João Bosco, os ipês se desfolharam e para nos reanimar se coloriram de amarelos luminosos (enxofre?), no sol desta manhã radiosa, nada diabólica. Por todos os lados florem ipês e eu me lembro do João, Bosco de Castro Teixeira, o meu amigo de Roma e que permaneceu amigo por toda a vida. João, Lelena, Camila e Priscila -, três mulheres de Roma, três mulheres do João -, convivemos uma amizade e fazemos arte e cultura juntos há muito tempo -, e recentemente João me escreveu um poema para o convite da mostra Tiradentes Revisitada, no Solar dos Ramalhos, muito apreciado por mim e por todos. João tem muito bom gosto literário, profunda concentração ao ler e pensar, espontaneidade original, e vem fazendo uma grande obra pela educação no Brasil. Fosse chinês e já teria sido Ministro da Educação, pois profissionalmente, eu o explicaria como "um desenhador de Universidades”. Ou seja, uma profissão confuciana, laotsetiana, e que nem existe. Como o pintor, o desenhador de universidades é uma profissão que não existe. É feita pela vida, ou melhor, pela arte que tudo faz. Educar é uma arte. Aliás, muito perigosa. Tem hora que se educa e hora que se deseduca. E João sabe disso. Foi menino ali junto com seus muitos irmãos, creio que 13, e mais a meninada da Ponte de São João Del Rei, de todas duas, três, quatro, todas lindas, inclusive a mais recente, a de mão inglesa, extravagante como uma estrela, do antigo prefeito Nivaldo, de quem aliás, comprei a primeira casa de Tiradentes, onde, como sabem, moro e atuo. Imagino que os Castros Teixeira eram pessoas do outro lado da ponte. Cresceram ali, embora viessem de Oliveira, logo depois de Ritápolis, onde nasceu Tiradentes, na hoje esquartejada (em três) Fazenda do Pombal. Salvemos a Capela do Pombal, onde foi batizado Tiradentes. ...mas falemos de João, esteve sempre nas escolas. Estudou, leu, aplicou tudo que aprendeu. É difícil, senão impossível para um educador num país tão pobre em educação, por falta de verbas e outras faltas , deseducar-se. Daí que a questão da educação passa pelo João. Gosto de tudo dele, só não gosto - e aqui vai um pedido ao Prefeito Sidinho, de São João Del Rei, pra que o tire urgente daquele gabinete de Secretário de Educação de São João, não da função, evidentemente, que ele está exercendo muito bem, mas do lugar, que é muito friorento e elevado e exposto ao vento, e de detestável ardósia, e que está lhe fazendo mal à saúde. Imaginem. 52 degraus de ardósia gelada, terceiro piso sem ascensor. É tão alto que o espigão da Dom Bosco quase que se vê de vôo des oiseaux. Ora, esta gente daqui não se dá bem, muito menos no inverno, nestes raros edifícios que temos. Não estamos acostumados. Faltam genes edilícios. Portanto, peço ao Sidinho, e também ao querido amigo Helinho Guedes e sua encantadora esposa, que peçam ao Sidinho para arranjar urgente um gabinete florido e saudável para o meu amigo João exercer sua importante profissão, que aliás nem existe. Só a missão.
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A potranca e o garanhão / 1998 |
Mas, falemos dos ipês, de que tanto João ama. A última vez em que assistimos a um concerto, na Matriz de Tiradentes (unanimemente tida como a mais bonita do Brasil) lembro que ele delirava com a beleza e as formas e tudo o mais dos ipês, que diga-se, nem estavam floridos, como hoje. Gosto muito de ambos. Do João e dos ipês. É a mais bela das caducifólias do Brasil. Buquês de enxofre!? ... Pediu-me ele que pensasse um desenho para representar a flor do ipê, e quis saber se eu achava que o ipê devia ser a nossa flor nacional. Acho que sim. Mas soube, em sobressaltado, que os ipês floriram muito cedo este ano. Dois meses, em média, de antecipação. É o tempo que virou. E em que vai dar isto ninguém sabe. Tiradentes nunca esteve tão quente. Educar e deseducar. Tive a sorte de conhecer grandes educadores amigos. Augusto Rodrigues, Aurélio Buarque de Holanda -, um educando pela arte e o outro pela erudição. Deixemos João, por um momento. Augusto quase não tivera instrução. Aurélio sabia tudo. Creio que Aurélio era de Pernambuco. Augustinho também. Notável Aurélio...excusado dizer. Seu Dicionário é um prodígio da cultura brasileira e do esforço de um homem que passou toda sua existência pensando a língua, pesquisando, caçando palavras, expressões, entendimentos, dicionarizando. Tive a honra, a grande satisfação de ter sido incluído em sua Bibliografia, ao lado de meus primos José de Alencar, Raquel de Queiroz, Mário Alencar e Araripe Jr. Tínhamos um amigo comum, o Paulo Mercadante, em torno do qual nos encontrávamos. Pôs-me entre os formadores da língua brasileira apenas por usar o verbo vestir como usar. "Vestiam bonés da Guarda Vermelha, e chupavam picolés, na canícula de Pequim” - eu escrevi, em meu livro sobre a China. ...Era relativamente fácil encontrá-lo no caminho que ia da Academia ao escritório do Paulo. Os jovens escritores, os jornalistas, as pessoas em geral gostavam de dar sugestões ao Mestre, como era chamado, e ele as escrevia e punha no bolsinho de fora do terno. O Dicionário estava em construção, ele dizia, e agradecia galantemente. Só uma vez lhe dei uma sugestão : "correr de casas”, uma expressão que significava uma sucessão de casas iguais e de paredes ligadas -, como as que morei, no Encantado, durante a minha meninice. O Encantado era um subúrbio proletário e encantado do Rio, embora tudo tivesse para não ter encanto nenhum -, tal a pobreza, a periferia, a condenação. Anos antes abrigara famílias estabelecidas de classe média baixa, os ferroviários das Oficinas da Central do Brasil. Foi ali que aprendi e vivi desaprendendo num correr de casas. Um dia, ainda na casa do Paulo, já doente, e com muita razão, Aurélio estava a lamentar-se como varão. "Mestre- disse-lhe eu, você é muito amado”. "Amado nada...” - ele respondeu, depois de muito pensar. Todos rimos e ele se alegrou, para nossa alegria. Marina, sua bela mulher de toda a vida, fazia pastaciutta muito bem. Conseguia serví-la ainda quente, ao ponto em que pudéssemos comê-la quente, coisa difícil no Brasil. Mestre, eu dizia, escrevi conforme ouvi. Era jovem, escrevi o que ouvi. Apenas isto. Vestiam bonés. Eu mesmo vesti muitos bonés escolares. Vestiu o boné, meu filho ? Bonés e casquetes do Colégio Piedade, do Huron Meirelles, do Metropolitano, do Colégio Baptista, do Pedro II. ... era mesmo muito agradável e honroso encontrar Aurélio na casa do Paulo. Lendário Paulo, escreveu livros notáveis-, sobre Tobias Barreto, sobre a consciência ou inconsciência conservadora dos brasileiros, sobre o Portugal da Revolução dos Cravos. Paulo e Ana Elisa eram pessoas muito boas. Devo muitos bons conselhos ao Paulo. Seu filho, Marcinho, era um rapaz adorável. Não trabalhava, se recusava. Talvez fosse um nobre extragaláctico. Uma figura muito excêntrica, com certeza. Era extravagante, fazia tudo em excesso. Comia o meu pão integral inteiro, de uma só vez, como se estivesse comendo um biscoito de araruta. Versava o meu azeite de oliva com tal esbanjamento, e em tudo que comia, que sentíamos-nos aliviados quando devolvia a lata do precioso óleo ao repouso da mesa. De uma feita ficou três meses só se alimentando de mel, para ver o quanto e quando se enfezava. Após jejuar três dias, tomou um chá de trombeta e viu uma noiva índia acenando para ele em cima de um enorme cedro que tínhamos à entrada da nossa casa de Mirantão. Jurou que seria celibatário para sempre. Um dia me confessou que estava há seis meses pensando se devia ou não atravessar a rua e comprar um quilo de café. Até que comprou, é claro. Só que tomou um quilo de café de uma só vez. Contou-me também que fizera uma incursão aos pastos de Santo Antônio do Leite, onde poderiam ser colhidos com fartura os melhores cogumelos do Brasil. Pois bem, um dia, remoto e belo, ele me apresentou uma folha de papel vegetal, e de tal maneira me encantei com o material que fiz mil e quinhentos auto-retratos e mil e quinhentas transcrições visionadas, nem sei bem da onde, e nunca mais parei de pintar. Do papel vegetal para a vela náutica foi um sopro. Recentemente descobri, também por acaso, o papel poliéster, que é o "vegetal” de hoje. A vela náutica em poliéster e o papel poliéster se casam muito bem. Eis aí um casamento feliz. Aprendo desaprendendo.
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Duas Casinhas Azuis / Trancoso / Bahia / 2000 |