Feliz o artista que não tem país. Só casa, escova de dente, essas coisas. Feliz o pintor de poucas tintas, poucos pincéis. Quatro ou cinco tintas, um ou dois pincéis. Nada como uma trincha, destas comuns de pintor de parede, para uma boa e nova tela. Feliz o pintor que encontra a sua tela, o seu suporte, a sua rocha para pintar. Um dia, uma tela. Uma tela, dois dias, três no máximo.
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O Eremita / Tarot / 1986 |
Eu acordava às primeiras horas da manhã, tomava um café simples e ia pintar. Pintava paisagens arquetípicas, paisagens que vinham de dentro, paisagens do mundo inteiro, paisagens internas. Olhava a natureza, depois fechava os olhos e pintava. Nem mesmo a natureza era um lar para mim. Preferia uma paisagem inventada, ainda que minhas árvores fossem árvores, meus campos e minhas nuvens lindas bailarinas. Era bom, muito agradável, sentir a névoa fria da manhã nas minhas narinas, por o silvo do pássaro faminto no meu pincel e pintar aqueles morros que corriam, como nuvens no céu. Tudo desaparecia e permanecia, passava e ficava. Eu punha na tela o dia que ali passava, em formas pessoais e conteúdos inexplicáveis. Talvez tudo não passasse de um sonho, dormido nas faldas das Itatiaias. Por treze anos transcrevi assim, direto das pedras, os animais, os homens dos tempos de ouro, quando homem e natureza eram um só. Gosto da minha tela de vela de barco, sintética, nova, descoberta por mim, intuitivamente, e creio que um dia não mais existirão telas de pano, serão todas como a minha, pois todas as telas de pintura vieram das velas de barco e a minha é a mais bonita, nova e duradoura de todas as velas até então. Também gostava - e gosto, do papel vegetal. Gosto de correr com o pincel. Tudo bem feito e rápido. Pintar de um jeito que me sobrasse muito tempo para viver. Ter uma vida normal, casa, família, amigos, como todo mundo. Pintei Pilares, vários, várias sequências de imagens - bichos, figuras eróticas, apenas traços. Pintar fácil, sem erro nem retorno, pois jamais errei um quadro. Um dia achei que em arte não havia erro, e sim conserto. Como a vida. Tudo que serve para a pintura serve para a vida. Raramente consertei um quadro. Às vezes, a tela me impunha um desafio, na forma de um erro disfarçado, e que nem era erro, mas uma maneira de superar a mim mesmo, pois ao consertá-lo acabava conhecendo novidades que incorporava à minha pintura. Cada dia um dia, cada tela uma tela. Raramente pensei no que ia pintar. Chegava quieto diante da tela branca e começava a pintar. O primeiro traço, a primeira pincelada e pronto, tinha o quadro feito. Era só assinar, e que prazer imenso o assinar um quadro, até maior que pintar, pois assinando estava tudo finito e eu podia viver a vida. A vida fora dos quadros, isto sim me animava. Andar pelos campos, louco e desempregado. Olhar detalhes aparentemente bobos, pedacinhos de coisas insignificantes, deter-me e olhar. Olhar com as mãos, e caminhar. Sentir a água gelada e pintar a água fria, correndo, como os morros que passavam. Parecia que tudo passava mais rápido que eu. Impérios que esfarinhavam, casas caídas, pessoas morrentes, países que viravam rochas e rochas que eram telas, telas imensas, enroladas, guardadas e esquecidas no meu baú de tesouros.
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Caraíva com Reflexo / 2004 |
Tiziano. Um dia em Veneza vi um Tiziano. Não me recordo o que era, mas com certeza eram virgens que subiam aos céus, como gozos terrenos. Era um pintor, como Canaletto, com casa própria, e que casa! Veneza refletia. E eu pintava reflexos na água. O mundo de cabeça para baixo, céus, eu podia virar o mundo de cabeça para baixo, simplesmente o pintado refletido na água. Tive vontade de roubar aquele Tiziano. Fiquei horas pensando como fazê-lo. Penetraria por uma corda no Palácio dos Doges, pegaria as virgens aladas e as duplicaria refletidas naquelas águas refletidas. Pensei também em roubar um Canaletto lindíssimo, mostrando o Grande Canal ainda sem Peggy Guggenheim. Países, nações, eram pessoas ricas, embrutecidas e entediadas. Nunca esqueci aqueles reflexos. Um dia, na verdade mui recentemente, ao encontrar a vilazinha de Caraíva, no sul da Bahia, inventei-lhe um reflexo na água. Eram casinhas humildes, belas e harmoniosas e que haviam vencido o modernismo destruidor. Canaletto teria gostado de Caraíva, mas quando pintou Veneza, Caraíva ainda era uma terra virgem de antropófagos gentis. E assim corria eu por aqueles morros que passavam, pelos canais que sumiam, rápido, querendo fixar o que perdia, ainda tonto de vida. Vida simples e sem país. Sorte a do Brasil, que chegou atrasado e foi salvo de ser um país, destes que existiram no alvorecer do mundo e que hoje agonizam. Um ladrão de luvas brancas. Sim. Roubar tudo e de todos. Um pintor ladrão. Ladrão de banco e de telas, um ladrão pintor. Um bom quadro não é para ser visto, como hoje fazem as multidões nos museus, é para se ter. Ter na parede, mais nada. Deixar que sua beleza penetre sem percepção, sem o esforço de ver. Roubar, roubar o belo Brasil e com isso ser pago. Ignaro Brasil. Pintei e fui roubado. O mundo era outro, bem diferente, o mundo eram eles, não eu, o pintor brasileiro. O Brasil nunca mais o Brasil - e eu pensava o mundo distraído. Pensar para não pensar. Mãos, pernas, mas bastariam? Não devia a pintura ser inteligente e não era a inteligência matéria dos cérebros? Por acaso minha mão seria suficiente para vencer o intelecto e ser inteligente por ela mesma? Mãos, mãos que diziam o que eu não sabia, minha e dos outros, mãos arcaicas, mãos dos homens.