Pintor, cônscio da responsabilidade pela guarda, fiz um retrato da minha ancestral avó, a heroína Bárbara de Alencar e purifiquei o dinheiro que mamãe me deixou, e que Tristão, o bom ladrão, roubou dos ingleses. Dito isto, e purificada a elevada soma sujíssima, fiquei a meditar no que na irrealidade (sic) nos interessa. Ou seja, as cores. As de Bárbara pintavam o momento em que a heroína é libertada da Fortaleza de Fortaleza, quase nua, e sua escrava liberta Matilde, companheira confederada, apiedando-se e em grande respeito, cobre-lhe os ombros com a própria manta, aqui colorida com o azul e branco da Confederação do Equador. O gesto faz Dona Bárbara cerrar os olhos e lembrar-se de sua Fazenda do Pau Seco com os pequizeiros em flor e fruto, duas borboletas azuis, a sede, a capela, os campos cultivados e ao longe a Serra azul do Araripe, de sua juventude e dos encontros anuais com os seus familiares, o rio barrento, os campos cultivados, o gado (as crianças daqui de casa gostaram muito das vaquinhas amarelas) e os vastos pequizeiros floridos e frutificados. Ao fundo, como "uma linha azul no horizonte", como disse Leonel de Alencar Rego quando a divisou pela primeira vez, Dona Bárbara vislumbra a Chapada do Araripe, em azul profundo, um escudo no céu, a proteger sua terra e sua gente. Completando a cena, um ramo de pequis verde e amarelo serve-lhe de ornamento aos cabelos e lembra-nos as cores brasileiras, que ali nasciam como ela.
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Retrato da heroína Bárbara de Alencar / Crato e Fortaleza / 2002 |
De modo que assim como as cores excitavam os animais, o pintor devia excitar-se com as cores que conseguia por na tela. Seriam as suas cores de macho a atrair as suas fêmeas, e vice-versa. E não só. Não. Eu não era Carlos Drummond de Andrade, a sê-lo preferia Guimarães Rosa ou melhor ainda, Euclides da Cunha. Um absurdo, portanto, uma extravagância -, eu era eu, nada mais verdadeiro e tolo. Cores eram virtudes que devíamos pintar. E se fôssemos bons pintores, ainda mais e melhor que a desditosa natureza. Era necessário, em princípio, comungar uma paz urgente e salvadora e para tanto tinha que não só corrigir os deslizes terríveis da natureza como acabar com o dinheiro. Precisávamos urgente de um dinheiro real, que apostasse nas pessoas, dando-lhes créditos por toda a vida, sem riscos, a fundo perdido -, digo, ganho. A paz que salvasse as cores, e nos fizesse pintar. Pintar assim seria como ter a própria cor. Rafael era azul. Fra Angélico seráfico. Watteau verde. Fragonard dourado. Rembrandt marrom. Dufy preto. Modigliani carne. Picasso galo. Matisse azul Matisse. Guignard verdinho e branco. Portinari um vestido de bolinhas de graça infantil. Visconti o vento, o romance, o Teatro Municipal. Inimá era vermelho como seu grande coração. Marcier era de barro. Um dia mostrei-lhe por acaso na Galeria do Jean Boghici uma cachoeira de quase dois metros de queda, que desenrolei na frente dele, arrancando-lhe um "Oh!" - ao que em retribuição disse-lhe ser ele, Marcier, a última tela. Jean pediu que eu escrevesse isto e eu escrevi. Hoje vejo que não só ele era a última tela, como eu a primeira, já que após ele o óleo sobre tela declinou e surgiu a tela de poliéster dracon descoberta e trabalhada para a pintura por este modesto pintor interiorizado... Bem,Tarsila, a cor dela, é tão dela. Tantas cores. Samico, Goeldi eram pretos e vermelhos. Aldemir era acrílico. Tomie redonda. Mabe, Volpi excêntricos. Bonomi era preta e branca. Eu, o mais colorido dos pintores, na verdade, não tinha cor. Nem cor nem palavras. Um pintor-escritor absolutamente mudo e sem cor. Uma espinha elétrica, arranjada com crueldade e indiferença, quase absolutamente egoísta -, não, eu não podia pintar aquilo. Escrever que o fosse, quando tudo vira preto no branco e as tintas se nivelam ao preto, monótono e sério e o branco é usado sem piedade. Piedade, piedade para um pintor novo e modesto. Sejam bons pra com ele, dê-lhe sepultura de sete palmos, ponham-lhe esta lápide gravada : " Aqui não jaz", no pátio da Matriz, onde as crianças e os visitantes possam lhe pisar, para sempre, que pouco é.
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A Fazenda do Pau Seco / Crato / Ceará |
É isso aí amigo, ai de mim se não fosse um bom vendedor ... e só vender coisas boas. Pinturas, sonhos, eu diria. Tudo realidade. E existiria mercadoria melhor? Sim, fala-se muito em talento, mas um bom quadro é mais que talento, deve ser inteligente. Hoje o talento já não é mais o dinheiro e a inteligência declina na arte, e declina geral. Um quadro inteligente: eis aí a sabedoria que perdemos. Contudo, perdido e recuperado, uma boa obra de arte devia ter muitas coisas, e mais a inteligência, ainda que hoje se prefira o caminho deísta, sobrenatural, aparentemente mais fácil para explicar o fenômeno, embora tedioso e sem novidade. Talento, assim, parece coisa soprada por Deus. E não vejam presunção nisto, pois a inteligência, ainda que pouca e as vezes tosca, é um dom mais raro que o talento, aliás inexistente, de Deus. Talento era transformar dinheiro falso em verdadeiro.Ora, jamais a inteligência se permitiria tamanho absurdo. Ademais, que demoníaco demônio o Diabo! Um tolo ser e não ser, como eu, que sou. Mas, não se deve evitar o encontro com ele e o sinal do encontro é o dinheiro. Fiquei cinco anos numa análise para dizer ao meu analista, Eustachio Portella Nunes, que "agora eu estava querendo ganhar dinheiro", ao que ele de pronto respondeu: "Ah, que bom que o Sr. Oscar está querendo ganhar dinheiro". Foi uma enorme surpresa, talvez a maior de minha análise. Mas foi a excepcionalidade da minha pessoinha infantil e juvenil, e mais tarde a pintura revelada, que me fizeram um bom vendedor. Um prodígio, que pinta, vende e purifica os próprios quadros. Pois, infelizmente (e felizmente para mim e para pintura), todas as telas de pintura vieram das velas de barco e esta minha tela era uma vela de barco. A vela náutica da nossa época. Sintética. Tinta sintética sobre suporte sintético. Eis aí um casamento feliz e colorido. E assim que só a arte e a jardinagem purificam. Mas, pintor fazedor de pinturas, pergunto: pra que tanto mar e tão pouca matéria?
Um dia eu ainda entro no corpo de Cristo e me santifico comendo uma morcilla de Burgos com um clarete, em companhia de meus estimados amigos Vicente e Sol. Maçãs? Nada disto. Vamos comer cajá, caju, abacate, graviola, coco, seriguela, cacau e tudo mais, sem nenhum pecado. Isto aqui é o paraíso infernal. Haja vista o tamanho da caldeira do Sol, em pleno inverno... a quantidade de mosquitos.
O meu Príncipe está por baixo. Uma pena. Você fica conversando bobagens com o Príncipe e não tem coragem de falar das minhas possíveis transcrições visionadas da Cantábria, ah! se ele me patrocinasse, como um príncipe, e eu pudesse, digo, tivesse a oportunidade de botar a mão no bolso dele, vis a vis com o Rei. Grandes bolsos de um Príncipe, eu presumo. Imagine os de um Rei que não precisa declarar bens nem rendas. Mas, falemos de Guadalquivir. E não sublinhemos o já sublinhado.
Sobre suas palavras, é isto mesmo. Cícero Dias é um grande pintor.Toda arte que é alegre, como a dele, para mim, possui este "compromisso" de fundo com o progresso, no caso, o mais eficaz, já que parte da beleza. Há um certo açúcar ali, mas onde não o há? Fazer uma horta...seria um solução? Melhor seria pintá-la. Uma horta como deveria. Não para ser comida por um erro de trajeto, mas para ser devorada com os olhos. Uma horta para os meus olhos cansados de guerra.