O Brasil nunca mais o Brasil. Não. Sim. Eu arrisquei a vida pelo Brasil, eu e outros, tantos, exceto os que morreram (Onde os ossos de Tristão e do Companheiro João, Paulo Stuart Wright?) ...O artista devia pensar o Brasil. Mas eu não era o Brasil -, se tivesse nascido lá teria lutado lá e pintaria tulipas, ou montanhas, fosse na China ou em Minas Gerais. Nasci no Rio de Janeiro, num bairro pobre e esquecido, ainda que de nome bonito e lindas montanhas, em um tempo empoeirado pelo tempo, portanto não seria assim tão carioca quanto insinuei, embora ninguém viu o mar e nem tantos mares quanto eu, vagabundo que fui por longos anos em Ipanema, Mangaratiba, Angra dos Reis e tantas outras praias e costas que estive em minhas andanças pelo mundo. Posso dizer com segurança que ninguém viu Marco Polo na China. Um dia, muito provavelmente, Copacabana, já no primeiro século dos jardineiros, iria renascer tal qual um dia, coqueiro, pitanga, a eugenia copacabanensis, o feijão-do-mar, a areia branca e o mar. Minha Ipanema dos Dois Irmãos, onde estás que te escondes? Ora, o artista devia ter coragem, principalmente da saudade. Devia poder lembrar-se do gozo do gozo, da meninice contemporânea, devia se perder na senescência, de que nada sei (ou muito pouco). Sei que meu paginário de Maria quis ir da senescência à juvência, segundo o meu querido Antônio Houaiss. Eu, jovem escritor, nada sabia de ambos. O Brasil, portanto, não deve lamentar-se, pois pra que chorar? Sim. Um pintor deve chorar o Brasil, enchê-lo com as lágrimas da alegria e conduzir sua evolução à remoção das fronteiras poderizadas. Chorar o Brasil perdido, sorrir ao que virá a ser. Não, eu não era brasileiro. Era antes a minha pessoa. E o que implicava isto? Podia a busca da verdade pelo belo conter em si todas as formas de justiça? Seria justo eu, o armadilhado injusto, simplesmente por ser minha natureza contaminada? Bah! Eu pintava Tiradentes, minha adorável grande cidadezinha, como gostaria de pintar Salamanca, se lá estivesse, ou Alhambra, por dentro e por fora (mais tarde vim a desenvolver este projeto, qual seja, o de pintar Alhambra por dentro e por fora, com muito sucesso. Gostei, vi sentido pintar suas águas internas, tão cálidas e fria a um só tempo), ou seja, ao pintar os arabescos, coisa que fiz ainda antes da infância, quando pintei em sonhos aquelas pinturas impossíveis de serem pintadas (e que meu tio Jáder Castello Branco desenhava perfeitamente e que o pintor Araripe Macedo, também meu tio avoengo, idem), embora não me sentisse à vontade com a pintura das matemáticas. Preferia a das filosofias, gostava imenso das da biologia e em especial a pintura da física universal. Tudo que pintei foram cósmicas paisagens. Entretanto minha maquininha de poucos óleos só conseguia fazer traços e pontos, e às vezes umas linhas não muito longas, e algumas poucas e amplas passadas de tintas. Nada mais. Mas, podia eu e era e fui um pintor do Califa ser um homem quase maravilhoso? No fundo, Alá era por ele e eram ambos masculinos e machistas da fé. Contudo, tal fora o seu apoio às artes (também pudera, estava ali a purificar desesperadamente os seus dinheiros ladrados) ...que até hoje se vê a beleza das construções árabes e mouras, até em La Habana. Por isso peço gentilmente ao Vicente Botin que peça encarecidamente a Fidel que peça urgentemente ao Príncipe das Astúrias para salvar La Habana, a saber: vitoriosa campanha que acabou por me comendar com a Medalha José Marti, que me dava uma certa naturalidade cubana. Ademais, tinha exposto no Parque Céspedes, de Santiago de Cuba, o meu Repetróglifos Caribenhos, estava hoje exposto em caráter permanente na Casa del Caribe, dona dos mais belos azulejos de rosas que já vi. Mas, e o Brasil? Pintei flores em Tiradentes e as vendi em Miami. Havia uma pessoalidade em Tiradentes, mas o havia também nas flores, e as flores não mentem jamais. Exalam, como dizia o malandro Cartola, célebre compositor brasileiro. Epa! Se Cartola, que também era da Tijuca, era brasileiro e malandro como eu, logo, éramos ambos brasileiros. Seria, portanto, nossa arte brasileira? Afinal, o que nos distinguia? Ele compunha e eu pintava, ele escrevia e eu escrevia, havíamos habitado por muitos anos espaços semelhantes e próximos, limítrofes e contíguos, de modo que Cartola podia ser bem mais carioca do que eu, e que o fosse, pouco importava, o que valia era que as suas e as minhas flores também cheiravam no Japão. Concluindo: talvez só existam mesmo duas maneiras de abordar a vida pessoal, ou pintar. Ou você a conhece muito bem ou você a conhece muito pouco bem. Ambas podem lhe proporcionar alumbres em Alhambra, mas podem também lhes cegar. Assim, eu era brasileiro, naturalmente, digamos, pois na verdade eu nascera aqui. Devia, se pudesse, retratar o meu entorno superficialmente e profundamente, do melhor jeito que pudesse, se pudesse. Quanto mais o deixasse mais o seria brasileiro, no sentido da fixação viva dos citados entornos. Pintar, assim, era reconhecer os entornos, por os olhos num palheiro, num rancho de filme de cow-boy americano. Ou melhor, por os olhos no embarque para Cítara. Tudo que pintei foi um embarque para Cítara. Nada mais. Lá conheci Watteau. Quem!?
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Flores / 1998 |
E assim eu olhava os olhos distraídos, prestes a deixar o Brasil. Não que não o reconhecesse, ou desde sempre não me pusesse a serviço da sua arte e educação, mas por não aceitar o Brasil que me impingiam. Neurótico, eu? Com certeza. Como suportar um Brasil daqueles? Eu devia querê-lo muito para amá-lo assim, ou então não sabia o que era o amor. Ou ambos. E era lá amor aquilo? O que valia era o Brasil sem fronteiras, com arte e educação. Um dia, certamente, o Brasil não ia querer mais ser o Brasil. A esperança, portanto, era maior do que o amor. No fundo era tudo uma entidade de classes, quimicamente formada, mais uma vez num palheiro-laboratório de um filme americano. Ora, nossos índios, nossos pretos, mulatos e brancos trepam no mato, quando muito sobre o mais belo luar do mundo. Após o amor e o luar podem se banhar no rio e no mar, mesmo estando chovendo. Podiam, hoje os rios estão imundos e o mar frio. Enfim, tinha sorte por ser um pintor de palmeiras na terra das mais variadas e lindas palmeiras do mundo. As pintara mais da metade da vida e no entanto só pintara duas. As imperiais (que nem eram daqui) e uma outra que imagino fosse a síntese das palmeiras do Brasil. A pindorâmica terra das palmeiras. Talvez fosse mesmo um pintor das palmeiras, ou um menino que as quisesse vencer pelas alturas por ter ela me prendido e roubado a pipa, ou me tapado a lua ou mesmo o sol. Talvez. Coisas, imaterialidades. Bem, na arte não havia talvez. Talvez antes. Depois, tudo bem, vá lá, mas a arte era sempre durante. A que durava. Arcaica, era escrita em colorido, e pronto para se ver. Um dia até os cegos iam poder ver um quadro, e um cientista pintar uma teoria. Esperem e verão. Iam todos poder deixar o Brasil e serem realmente brasileiros. Paradoxos paradoxais. Só a pessoa estava a salvo dos paradoxos -, sim, viva a arte que não tem paradoxos e mesmo assim me excita.
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Duas Igrejas / Tiradentes / 1997 |
Um dia, em Manhattam, mais exatamente no Village do início dos anos 60, conheci Joan Baez. Apaixonei-me de pronto. Que ternura, que triste e bonita sua voz, sua figura, tão pacífica. Foi numa session do Thelonius Monk numa cave, numa mesa eqüidistante um metro e meio do grande jazzista e da grande cantora das flores. Estava lá com uma mocinha recém-conquistada que conhecera minutos antes, mas minha atenção, digo meu coração estava dividido entre Monk e Baez. Thelonius atacava o piano como se esmurrasse um desafiante. Suas grandes mãos e seus muitos anéis imensos aumentavam esta impressão momesca e maravilhosa, pois aquela era uma arte profunda, arcaica e verdadeira e, portanto, penetrante. Joan estava ali apenas assistindo Thelonius. Numa deixa, pedi-lhe em altas vozes que cantasse alguma coisa acompanhada por Thelonius. A princípio ele não gostou, nem ela, mas logo concordaram, após ouvir um coro pedindo que o fizessem. Foi inesquecível. Tucxedo Junction - eles cantaram. Ficou-me a pujança delicada da voz de Baez, e como conseguia por a sua pessoa, digamos, americana, na famosa canção que, pros que a conhecem, muito pouco tem a ver com sua voz calma, florida, suave, grande Joan Baez. A namorei perdidamente, mas não me casei. Thelonius chegou a nos apadrinhar mas, não casamos. Não se casava na América dos anos 60. Tínhamos uma geladeira, uma lavadeira de pratos e de roupas e podíamos sair por aí de motocicleta com a gasolina barata. Já as mocinhas americanas não estavam gostando dos meninos machinhos, principalmente sul-americanos. Nada aprendi com eles, senão que o prazer podia ser renovado e isto eu já sabia quando estive por lá. Marcuse era o pensador das estratosferas que acabávamos de penetrar e seu encanto, seu fim do mundo, era deveras animoso. Drogas, ameaças e guerras, o recrudescimento do dinheiro, a confusão reinante nas artes tudo, enfim, Marcuse nos mostrava a phoenix a renascer. Mas dançavam o rock e o twist muito bem. Os Beatles eram arcaicos, certamente maravilhosos, especialmente Lenon, mas o rock americano estava impregnado de história americana. E eu também. Contudo, mesmo assim, rock, twist, etc., Marcuse, os Beatles eram todos universais. Joan, por exemplo, era um modelo para a pintura. Não me lembro de ter visto modelo melhor. Tivesse que contratar um modelo (no meu caso desnecessário) teria que ser Joan Baez, cantando ou mesmo não. Deveria ter pintado Baez, Fidel e Che em Sierra Maestra. Tristão Araripe tomando o Aracati dos ingleses. Nossa, como a face morta de Al Zarkawi se parece com a de Che! Espantoso. Vou pintar Thelonius ao piano, à noite, selvagem, King Kong no alto do Empire State, tocando. Nunca. Vou mostrar o quanto fui americano, americanizado, sem complacência, como fui europeizado nestas terras, depois que aqui cheguei portando brincos e colares. Vou pintar a França que resiste. Retratar Vercingetorix triunfante, Darwin triunfante, Freud, Marx, Xian Xing e a minha Revolução Cultural -, todos triunfantes, mas, mesmo assim, continuarei sendo um pintor americano. Sorte eu ter entendido Nietzsche e desde cedo, e Dante muito antes. Ainda exulto sempre renovado com muitos poemas de Camões. Na verdade gostei um pouco e muito de um pouco de tudo que hoje nem gosto mais. Um pintor gosta mesmo é de seu café da tarde. Gosta de levantar cedo, não ter que lavar os pincéis e pintar. Parar. Fumar. Pintar. Parar. Fumar. Pintar. Comer, sim, comer é uma boa oportunidade para se ter uma boa aula de pintura. Procure ter os pratos brancos. Seja um vegetariano convicto por 30 anos. Procure ser solidário com os vegetais que come. Economize o sal e o branco. Ou seja, sempre que puder use o branco. Pense sempre que em verdade o verde é que faz o vermelho. Existe preto no vermelho. O cinza é feito por algumas nuvens carregadas. O amarelo é a luz de Sírius refletida pelo Sol. O azul, depende. Se anil já não é cor, é sentimento. Se da Prússia, estamos no preto. O rosa é uma invenção chinesa. Cores como amores. Qual era a cor do Brasil? Muitas, diriam os óbvios. Mas a arte estava muito além e aquém do óbvio, e a cor do Brasil era... verde e preto. Verde e preto -, eis aí o meu pensamento. E as cores do Brasil.
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Subida da Matriz de Tiradentes / 2007 |