Pode parecer idiotice, mas acredito e torço por um mundo sem idiotas. Esta afirmação nos levaria a uma dissertação sobre A Arte x A Imprensa. A Imprensa sofre de uma espécie de relativismo atroz, inimagináveis no mundo da arte. Para um artista (não se esqueçam que fui por 20 anos jornalista) de que valeria todo o esforço humano se o mundo não pudesse um dia ser isento de idiotas? Não consigo imaginar um mundo sem idiotas como um mundo aborrecido, pelo contrário, me aborrece um mundo tão cheio de idiotas. Acho que a Arte ajudaria a salvar a Imprensa, hoje tão confusa e partidarista, por exemplo, veja a cobertura da guerra do Bush e do Dicky Chenney, onde os ideais do informar são negados vergonhosamente. Acho que o mundo precisa e deve mudar, e para começar deve mudar a Imprensa. Simplesmente porque o olho é mais antigo que o cérebro. Primeiro as pessoas, depois a imprensa, ou vice-versa, tanto faz. Eu prefiro que mude a Imprensa, que aliás já está mudando. As pessoas estão criando um mundo capaz até de suplantar a realidade da Imprensa cavernosa. Ou seja, a salvar-se um jornalista, que o seja pela arte. Dines devia salvar a Imprensa (ou seria melhor deixá-la declinar como um amor de bolero?). Minha opinião é que o Dines é pintor e não sabe. Escritor todos sabemos que ele é... e há quem diga que o bom escritor tem tudo para ser um bom pintor.
 |
O Ferreiro / Tarot / Galeria Bookmakers / Rio / 1986 |
Mas, perdoe-me os leitores, principalmente os que pensam pegar aqui alguma solução para seus problemas de pintor, ou mesmo de vida, mas, Melina não me sai do pensamento. Falo de Melina e falo da arte. Morro e não a esqueço. Como uma bela pintura, ficou impressa em mim, no lembrado do imaginado -, mas não, não era mais intelectual que sexual. Jamais. Era mais… platônico e explosivo. Um amor de ensandeu. O dia floria no Campo do Santana (um lugar estrigídico, onde um dia, a 1de abril de 1964 fui metralhado e morri) quando a vi pela primeira vez. Eu era militante da Ação Popular e fazia parte do CACO, o diretório acadêmico da Faculdade Nacional de Direito. Talvez tenha gostado da minha imaginação. Eu gostei, gemi e ouvi os seus gemidos, naquela noite estrigídica, quando as tropas dos Estados Unidos aliadas às tropas do Brasil se insurgiram contra nós, rapazes e moças indefesos, que jamais tinham pegado numa arma, jovens futuros médicos, advogados, diplomatas como eu -, não, ela mexia-se toda (um grande lhe atributo eterno), e me engolia, e aquilo era e é como abismos, de rosas, de espinhos e tudo mais, mas, todas às vezes nos beijamos farto e louco, e estou certo de que gostamos....Lindos olhos de cristais, eu os fitava e adivinhava. Lia e via, tudo ali, naquele oraculado amor de cinema mítico. Pobre JD, pobre eu, subversivo empertigado, e saiba-se não ser difícil matar um subversivo naqueles tempos de horror, eufemisticamente chamados de Guerra Fria ou mais especificamente de Chumbo. Fosse o que fosse eu a amava, mas ela era também, e no mesmo nível, uma "ampliação”. Queríamos que incluísse em suas catilinárias os "nossos” militares, os da América do Sul. Oui - Ela disse, pronta. E em troca então lhe contei que meu avô, Insibulus Trasíbulus Marcoisos, havia me dito que a Grécia nunca ficaria de pé enquanto não tivesse os mármores roubados por Elgin, e que ela os devia relacionar às Ilhas Malvinas, afinal sua majestade mantinha submarinos atômicos no Atlântico Sul, ou seja, o nosso era um mar inglês. Grandes piratas. Reis do Caribe. Corsários capazes de grandes amores. Eroln Flyn. Espadas, espadas, espadas como pincéis, eu devia amar aquilo -, pois eu mesmo fazia minhas espadas de bambu e de restos de tábuas e galhos e lutava pintando o mundo. Um oportuno sinal epidérmico no meio do rosto da face esquerda de quem me vê facilitou-me a impressão forte, de modo que meu pincel, além do sinal, parecia ter uma integridade psíquica, cromática e artística.
 |
Subida da Matriz de Tiradentes / 2000 |
Porca política -, tenho certeza que Sophia Loren não gostava nada disto. Preferia meias de seda, longas, pretas, saltos de madeira, cintos de paetês, e aqueles batons fantásticos. Ora, já haviam posto anteriormente o ananás na cabeça da Carmem Miranda e depois inventaram aqueles seios, seios que você, meu amigo gentil-homem e jornalista descreveu com maestria e caráter poluto, como uma bela pintura. Viva Burgos. Pontes. "Las pontes non balen nadie”, posso pintá-las, sem que nem estejam ali, embora alegrem e muito a natureza, quando esta começa a tornar-se enfadonha e pobre diante da imaginação pessoal, agora posta e unida a disposição das ferramentas de busca. Vejam só: Google / "Oscar Araripe” Bin Laden / 12 de maio de 2006 : 28 links. Melina, Sofia, La Violetera, seriam todas uma mesma mulher? Todas mulheres numa só. Caríbdis? Nem tanto. Penso apenas em mamãe, seus lábios que nunca olhei. Na verdade, ainda que ela tivesse aquela boca, eu a possui. Repito: eu tinha vinte anos e estava apaixonado. E eram todas uma outra história. Neste dia do jantar a que me referi, ou posteriormente, se ainda não me referi, Murilo Mendes, que era católico fervoroso, no sentido de ferver e até suspender nuvenzinhas de fumaça sobre sua alta cabeça de santo -, mesmo assim, ou por que assim, deixava ver, escandalosamente, que desejava Sofia ardentemente. Sofia, Audrey (a que morava contígua), Katrine, Melina, era tudo sonho, e nada tinha a ver com a pintura, e muito menos com a literatura. Mas, quem não a desejaria? Ela sabia, é claro, de modo que quando lhe perguntei já tonto se ela achava que um poeta podia fazer tudo, ela certamente traduziu este fazer tudo por pedir tudo e deu aquela resposta antieinesteiniana: bem, depende. Aquilo me esfriou o coração. Como podia ser tão má a ponto de me postergar ao ostracismo em minha própria Citara, sem nenhum prazer, massacrado pelo poder que ela representava, como pode? Bem, se pode deve ser feito. Foi a pior noite de minha vida. Ouro Preto resplandecia, Antônio Dias, Joaquim Silvério, meu bom amigo Cláudio (que na época era o prefeito eleito) todos me foram solidários. Posto pelo Juiz na Casa do Artista Brasileiro, ali passei duas noites, até que obtive um hábeas corpus. Ai de quem, disse o grande desenhista, pintor e educador Augusto Rodrigues...ai de quem não esteve preso em Ouro Preto!
E assim não tive outra saída senão pedir-lhe que me mostrasse os seios. Disse-lhe que não queria mais nada, somente os seios, e o disse sedento, como se deixasse o deserto.
Você pode imaginar, meu amigo gentil-homem de Burgos, quão gótico e solene restaram impactado aqueles comensais, com os copos e os garfos e facas parados no ar?
Só pode ter sido o vinho. Ela disse que sim, meio não dizendo, falando, mas consentindo com a cabeça e pasme, meu predileto amigo, neste exato momento a mulher do Murilo, a Maria da Saudade Cortesão, filha do famoso dicionarista e historiador português Jaime Cortesão, nos convidou a todos a um licor, e aí me separou de Sofia e eu fiquei ali longe até que tudo terminou numa abóbora de carroça e, obviamente, acabei não vendo os seios de Sofia. Se é que não os vi. Também pudera, não o ia vê-los ali na frente de Murilo e Saudade, na frente daqueles Vieiras da Silva, Brancusi, Capogrossi, Miró, Guignard, Ismael Néri, Brancusi, Morandi -, mas, foi por pouco. Pena, pois se o tivesse consecutado poderia agora estar lhes passando o gosto, as súmulas e as sínteses, a aurora dos montes enganosos, ainda que você e eu não precisemos de realidades para extrair deste mundo de pedra um jorro de leite branco e bom.
Anos depois soube que JD era agente da KGB. Será que queria me matar por isso? Ou o seria porque era eu um comunista chinês da Revolução Cultural? Ciúme ele não tinha, estou certo. Tinha eu dele.Terrível é que jamais saberei. E se ela contasse-lhe as delícias duplas, três vezes por noite (lembre-se: eu tinha vinte anos e estava apaixonado), delícias que gozávamos até sem coitar. Coitado de mim. Amante sem ser, ou amante de uma só noite (afinal pra que fui dizer logo na primeira noite que gostava de virgens…), mesmo assim, ganhei fama e notoriedade nas garras de um marido da KGB. Teria corado Marco Pólo, esta minha vida de pintor. Um Casanova viajando com Marco Polo. E eis-me eu. Beijos, beijos é o melhor antídoto para o envenenamento por café. Eu ouvia seu nome e parecia ouvir Assassin! e estava ficando paranóico. Um dia, de manhã cedinho, antes que Yoko e John acordassem, fui correr no Central Park. De cem em cem metros olhava para um detalhe qualquer do jardim e via o rosto de JD, seus bigodes a la Jean Boghici, e uns olhos também bens parecidos. Mas não tinha um nariz nem maior nem pior. Pois bem, o via em toda moita, estressado naquele suspense, negro como os olhos de Melina. Queria me matar-, eu dizia, gritava aos transeuntes. Apontava paras moitas e afirmava que o seria de noite, já que ele era o mestre do "noir”. N’pas?
 |
Noturno no Rio Araripe / Bahia / 2001 |
E no entanto não havia JD nenhum. Devia ser alguma armação de mamãe, aquela doce menina. Não sabia nada. Fora criada mimada. Um dia faltou tudo e ela não sabia nem fritar um ovo. Jamais comi um ovo fritado por ela. Doce mamãe. Tinha medo de tudo. Adorava chocolate. Como eu, fumou até morrer. Às vezes se revoltava. Teria sido outra se tivesse casado com um homem rico. Talvez. Se conheceram num paquete que vinha do Rio Grande e passava pelo Rio de Janeiro. Eram os romances de bordo. A lua azul, Glen Miller, Pixiguinha, Luis Gonzaga. Casaram-se. Quase ninguém acreditou. Um dia ela foi embora. Eu tinha quatro anos. Minha irmã, cinco. Fomos morar com papai, pois mamãe voltou para a casa dos pais e uns tempos depois foi morar com o pivô da separação, com quem, aliás, diga-se, viveu o resto da vida. Acho que ela nunca fez uma feira. Não comprava nem bugalho no lugar de alho.Fumava como uma mulher que trabalhava no começo do século passado, não engomava, não passava. Era uma mulher muito boa. Gastava tudo que tinha, e muito do que não tinha. Quando fugiu fiou na conta de papai na sapataria do bairro 20 pares de sapatos. Flaubert teria gostado...Papai era um homem faceiro. Pobre, órfão, duplamente, triplamente abandonado. Muito esforçado. Não pegou a psicanálise. Tudo lhe exigiu muitos esforços. Gostava de dormir à tarde e comia fartamente. Teria sido outro homem se outro fosse o mundo. Era um mundo cavernoso o de onde provia, o porto da cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Um dia me deu uma sova de cinto de couro. Entrou pelo campinho de futebol como um louco e sentou-me o couro. Eu corri como cão ladrão, puto. Vejo-o também correndo atrás de mim em volta da mesa de jantar, querendo me bater com o mesmo citado cinto. Um dia roubei-lhe o carro e provoquei um acidente, pois sequer sabia dirigir. Tive que dar uma marcha-a-ré, pela primeira vez na vida, e atingi fortemente e sem controle o carro que estava atrás -, ato contínuo abri a porta do carro, pulei num rio e fugi da cena do crime. Um dia apaixonei-me pela bailarina do circo que tinha acampado no campinho de futebol e que era namorada do palhaço. Briguei com ele, que era muito mais forte que eu. Acho que achou que eu era louco. Irritado por uma coisa qualquer, dei um banho de mangueira na mulher de papai, a pobre da Carmelita, uma morena também faceira que nascera na Baixa do Sapateiro, em Salvador da Bahia, e que provinha de alta linhagem do candoblê. Eles abriram um terreiro de macumba em pleno Encantado. Minha avó Memém, a pessoa de mais fé em Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que eu conheci, ficou pasma. Meu avô Oscar de Alencar Araripe, primeiro livreiro do Ceará, correspondente de José de Alencar, seu primo, achou aquilo demais. Podia influenciar as crianças. Acabei no Colégio Baptista, acho que do mesmo grupo do Bush.Em resumo, éramos uma família brasileira do meio do século passado -, mamãe tornara-se professora. Apaixonou-se pelo filho que teve no segundo casamento, o meu querido irmão Oscar, um menino com um coração de ouro. Sim. Lá em casa somos todos Oscar. Mamãe é Oscarina, o pai dela Oscar, eu Oscar, meu irmão Oscar e tenho um filho Oscar. Macumba e gramofone. Eu ouvia coisas lindas naquela alta vitrola da Phillips, estilo Império, e ficava fascinado pelo olho verde que acendia e diminuía conforme a sintonia da transmissão. Discos enormes, O Guarani, de José de Alencar, música de Carlos Gomes. Maria Callas. Eles tinham um disco de Maria Callas. Eu achava que ia morrer quando a ouvia -, meu coração transbordava, eu era o drama, estava no drama e aquela voz me conduzia a sentimentos novos e maravilhosos.Ouvia Callas e me descobria. Havia mais um Oscar ali, e que nem era eu nem os citados acima. O "Oscar”, vocês diriam. Pois lhes dou sim um "oscar” -, dou-lhes dois, um para ele e outro para mamãe. Outros "oscars” para os meus avós Araripes. Eu ouvia Callas e me cria um homem bom. Era só isso. Mamãe era a Amazônia, e eu tinha escrito a sua história, assim com h minúsculo, mas também com maiúsculo. A história de mamãe e a História de Mamãe, num só livro, sem capítulos. Tudo então resultava em querer ou não nascer. A arte tinha me dado este poder -, o de querer ou não nascer, de modo que o livro narrava à maneira dos antigos viajantes a saga de Promeu, o que amazoneu. Homem construído, ele resolve nascer. Talvez fosse mesmo o bom gosto que criara a luz e esta os prismas que trazia nas mãos. Era simples: a luz passava pelo prisma manual e as cores então surgiam na tela. Hoje nem tanto, mas durante a maior parte da minha vida de pintor eu pintei com as cores. Primeiro as cores, depois as linhas. E que tolice é esta de dizer que na natureza não tem linha nem reta. Imagine. Na natureza tem tudo. E estamos botando mais. Cada estrato que penso, cada quadro que pinto, tudo soma e a natureza enriquece. Mas que tempos românticos...o som do piano falava como gente, e dizia claro para todo mundo ouvir -, dançar era um pecado, todos queriam dançar. Os violinos repetiam tudo. Ouvir. Era mudo como um quadro. Por o quadro a cantar. E apresso em dizer que meu pacto de Faustus previa uma arte alegre, libertária, de um rádio de fósforo, uma pintura que pudesse varrer a tristeza e o lirismo, o conservadorismo que havia se apossado das artes em Minas e Paris -, e se digo Minas digo mundo, digo Shanghai. Enfim, era tudo apossado, por isso o mundo sofria e ninguém em verdade possuía. Como o dinheiro, a posse era uma pintura falsa. Por que se preocupar com ela? Melhor pintar que um poeta não necessita de nada. Nada que não seja luz, que não seja tudo..