Melina foi minha maior e melhor mulher inexistente, inalcançável, um grande tesouro. Era tanto o meu amor que a confundia com Roma. Hoje, passado tanto tempo, já não sei se era loura ou morena, pois só me lembro de sua boca. Inimaginável. Mas, mesmo sua insondável boca, descaída, oferecida, hoje mais me parece o Templo de Vesta, a deusa-menina da Beleza, dona de uma antiga festa em que compareci por sonhos, sonhos de grandes guerras culturais vencidas, pobre convidado especial, que bailava tango grego, zorba cubano, tarantelas americanas e alucinadas pelas ruas romanas. Uma romana. Talvez Melina, ao invés da Ministra da Cultura da Grécia (e que docemente aceitara a minha sugestão de exigir da Inglaterra a devolução das frisas do Parthenon, o meu amado Parthenon), talvez Melina, repito, fosse tão-somente uma bela ragazza romana, e que me houvera servido um almoço caseiro, magnífico, nos arredores de Óstia, e que - jamais esquecerei - perguntou-me ela, neste incandescente dia, se eu era pintor. Pintor eu? - surpreendi-me-; mas porque o teria perguntado, se naquela época eu nem era um pintor?... pois tinha apenas uns seis quadros pintados sobre influências várias, e uma dezena de desenhos, quase todos hoje perdidos (e sem poderem somar-se às 2.500 obras que hoje, eu, velho pintor que pinta rápido e fácil, tenho). Mas, teria eu cara de pintor ou teriam os pintores caras de pintor? Jamais saberei. Eu, um brasileiro em Roma, um aventureiro em Paris, um Garoto de Ipanema, antes mesmo da Garota, o que sabia eu? senão do instinto e o valor da ousadia? Jamais, jamais. Sei que era Gerard Phillipe em Montparnasse 19, ou melhor, sei que era Amadeo Modigliani e que Melina, além da afamada boca, tinha um pescoço surpreendente, muito elegante e que parecia alçar a voz e balançar-lhe docemente os cabelos, permitindo-lhe lindas catilinárias aos militares golpistas da Grécia, indignação que me encantava sobremodo, além de me excitar.
Bem. Ainda que jamais a tivesse pintado nua, o que prova que não era ainda um pintor. Dir-se-ia um vagabundo, um excêntrico, no sentido chinês da palavra, ou seja, o que não está no centro. Um jovem. Um bolsista na universidade Pro-deo, onde, marginalizado, eu só pus os pés duas vezes, uma para pegar a minha bolsa anual, aliás, que me permitia pagar o aluguel do meu apartamento-janela-única, ainda que sobre o Pantheon, e a outra para encenar um show com o Chico Buarque e o Sérgio Endrigo chamado Quando le Canzione non parlano d' amore. É claro que todas parlavam. Pois bem, ali naquele pequeno apartamento daquele majestoso Palazzo Crescenzi, em Via de Santo Eusthachio, eu amei Melina pela primeira vez. E com ela vaguei horas e horas por aquela noite eterna de pedras e plátanos, gatos originários so império, e janelas impenetráveis, e portas militares e ferros, ferros por sobre pedras e pedras arruinadas, espalhadas pelo chão… e pelos saguãos do British Museum. Vergonha. Pobre homem, pobre pessoa irrevelada e que naquela época ensaiava ser livre, uma outra vez, como uma ave ferida que corresse insistindo voar, vôos baixos e quedas irreparáveis e muito sofrimento. Melina, minha atriz fantasmagórica, como eu, sofria e tinha medo, desespero e ausência de futuro. Como eu, ela, o povo grego e o brasileiro (e todos os outros, hoje vejo), sofríamos mazelas oriundas da má alimentação e dos genes culturais criacionistas, hierarquizantes e genocidas, genes que matam, a nós que morríamos, em plena juventude..
E daí Melina, o meu amor, a minha esperança de vida, a minha pura pintura. A Pintura. Jamais vi arte melhor e mais bela, mais musical, mais bem escrita, e tão subversiva. Ora, no fundo, eu queria, sempre quis ser pintor, e ainda naquela Roma daquela Europa da Pintura eu não o sabia que era, ou não podia ser o que era. Pois como poder ser pintor sem dinheiro, orfandado, estrangeiro, sem futuro e de amor impossível? Impossível? Qual o que? Ela era a minha mulher, creio que podia dizer. Boca impressionante, repito, originalíssima, meio caída, é, podia-se dizer que ela tinha uma boca caída, muito bela e sensual. Já eu, jovem jornalista, amante do teatro, ousei telefonar para o Albergo Raphaelo, em Piazza Navona, e pedi a ela mesma uma entrevista. Ali estava a voz da grande e maravilhosa atriz, uma atriz grega, e ainda por cima comunista. E francesa, pois conversávamos em francês. Disse-lhe que amava o teatro e a liberdade e que também eu, no Brasil, lutava contra a ditadura dos militares. Esclareço que Melina estava em Roma fazendo uns comícios fechados, em teatros, residências, universidades, denunciando a ditadura dos militares gregos, como eu, só que com muito mais glamor e fama. Pois bem, conversamos pelo telefone um bom tempo. Disse-lhe que gostaria de lhe perguntar o que significava a liberdade para uma atriz grega. E ela fez um silêncio, um silêncio de grande atriz, de boa pintura, cheio de indagações, como se eu tivesse dito uma frase transformadora, um abrete sésamo original. Jamais esquecerei aquele silêncio. Era uma paixão. E logo percebi que estávamos apaixonados, já pelas vozes, pelo teatro, pela liberdade e pela militância democrática. Eram duas horas da tarde. Ela marcou o encontro à meia-noite, no bar do hotel, onde aliás, por coincidência e graça tocava ao piano naquele exato momento nada mais nada menos que Vinícius de Moraes. Uma entrevista à meia-noite, no bar do hotel, com música bossa nova. Cheguei quinze para a meia-noite, tomei um conhaque no bar e esperei. Cego, inebriado, nem desconfiei do incomum do horário que ela havia marcado, e ainda bem, pois nada havia que desconfiar. Era tudo muito claro. Era o amor.
...Ela veio toda de branco, um colar de âmbar num colo muito cheiroso, sandálias gregas de prata e aquela boca enorme e caída, aquela paixão que nutria. Sentamo-nos no banco alto do bar. Vinícius tocava no belíssimo cravo do hotel um arranjo improvisado de uma música dele mesmo, em que dizia que quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém, lembro-me bem. Ela entendia alguma coisa de espanhol, percebia o português, mas era mais um entendimento pela "inteligência", o que era racional, e pelo coração, o que era intuitivo e pararelo, ou seja, uma comunicação fácil e impossível. Mas, nos 1 ano e meio em que estivemos juntos, fosse em Roma, Amsterdam, Paris ou Londres, jamais deixamos de nos entender. Visitamos o Marrocos, a Argélia e conversávamos de tudo, de Sófocles, Eurípides, de Fídias, que eu amava muito, como escultor e como ladrão de luvas brancas, como eu, Fídias era um pintor ladrão de luvas brancas, como de mim disse o Vicente Botin -, e de nossos amores, desejos e de tudo falávamos, normalmente, como pessoas comuns que conseguíamos ser um para o outro -, e até mesmo as conversas mais complicadas como a devolução dos mármores do ladrão Elgin, tema que se falava muito à época e que mais tarde ela, como Ministra da Cultura, haveria de exigir da Inglaterra. Sim. Os anos sessenta foram anos de mudanças, mas nós permanecemos todo 68, todo 69, nos incentivando pela importância do momento e, levado pela marcância daquela boca, daquela mulher amadíssima e que eu queria viva, repetia sempre a pergunta : O que era a liberdade para uma atriz grega ? E ela silenciava. Bem. Eu sabia ser ela a inebriante Medeia, e todas as troianas, Scila, Diana, Europa. Iracema, a nossa virgem dos lábios de mel. Sim, eu olhava aqueles lábios e imaginava a linda personagem de meu tio-avô José de Alencar, em Peri e Ceci, como Ulisses, numa jangada, a fugir pelos mares do Ceará. Disse-lhe isto, que a imaginava de lábios de mel e ela, sorrindo, conquistando-me de pronto, pediu-me que a levasse um dia ao Ceará e me ofereceu a boca, imagino em troca, os lábios, sei lá, ali na frente de todos, de Vinícius, que tocava, de Chico Buarque, que conversava com a sua mulherm, a atriz Marieta Severo, na poltrona, que aliás, malgrado a hora, chupava um sorvete de frutas. E de Araújo Neto, o jornalista, que tudo documentava e nada dizia, calado como um índio da Amazônia. Mas, aqueles lábios estranhos… bem, não vi mais ninguém. Era a eternidade. As palmas, as palmas que nos desataram daquele beijo, terno, absolutamente indecente, à vista de todos. Sim. Alguém já disse que as palmas deviam acabar.
JD, o marido de Melina, era um homem notável. Excetuando este primeiro encontro em todos os outros ele veio, digamos, me entregar a mulher amada, e depois levar, a minha, a nossa La Violetera, de volta para casa. Sim, ele a amava muito. Ele e eu.
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Ali, naqueles quintais, eu aprendi a pintar. |
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Minha pipa de bilhetes de loteria / Encantado / RJ / 1946 |