"Oscar Araripe é o Guignard de Tiradentes e o Carlos Drummond de Andrade da Pintura” - disse Jean Boghici, o brilhante homem das artes e da cultura brasileira, notável aventureiro romeno, francês e brasileiro, e de quem se contam histórias fantásticas, algumas até cômicas, e que tem o grande talento de ver, e vendo o de saber onde mexia a vida, tudo num átimo de segundo e tudo guardando para sempre em seu maravilhoso tesouro de vida artistizada. Ele comparou-me também (e vocês sabem que as comparações podem ser falhas) aos antigos pintores chineses de paisagens, como Ni Tsen, os chamados excêntricos, no sentido de fora do centro, do centro do ensino e da cultura, e muito longe da moda, e que haviam aprendido a pintura na vida, olhando a fumaça branca da névoa desenhando os contornos, as distâncias e as alturas dos curiosos e belíssimos grandes rochedos do Cuelin, no sul da China. Em 1974 estive lá e fiquei maravilhado. Subindo mansamente pelo grande rio represado e calmo eu via os magníficos rochedos, os pais da pintura de paisagem, a princesa da Pintura, e comentei com Katrine Hepburn que feliz era o homem que aventureiro descobrisse na maturidade sua pintura excêntrica e capaz de formar escola (o grande paradoxo do artista excêntrico). Bem, lírico eu não era. Ou melhor; era e não era. E nem acredito muito que Guignard o fosse. Acho que como Drummond ele quis e quebrou uma espécie de conservadorismo muito particular e que só quem mora muito tempo em Minas, (o nosso Cuelin das artes e da cultura) pode perceber e entender como atua, mais ou menos inconsciente. Algo misturado e enraizado, como se o catolicismo fosse sublinhado na dor e a Inconfidência mineira não tivesse dado certo. Uma espécie de banzo miscigenado. Mas Minas era Mozart e Mozart era alegre e eu havia achatado as palavras sofridas e as colorido alegre. E havia as volutas... e para quem escreve livros que exigem novos leitores e mais que isto, novos editores, livros de muito esforço, como eu, e que são como rolar pedras para o alto do Cuelin... sabe que a pintura é como rolar pedras dentro d’água, rio abaixo. A pintura era um doce de coco perto da literatura. De modo que minhas pedras foram e são outras. E assim como as chuto, também pinto nelas. Radioso, alegre, mas não haveria também lirismo nisto? E não seria a própria paisagem a mais lírica das líricas? Sim. Eu olhava o Cuelin negro e radioso, enrugado e suave, ao lado de minha amada Hepburn de cabelos arruivados e creio que ali virei pintor pela segunda vez. Hoje, aqui em Tiradentes, vejo o Cuelin atrás da Matriz de Santo Antônio e recorridamente o pinto nas minhas telas tiradentinas. Quanto a La Hepburn digo como o Chico Buarque: "chego a mudar de calçada, quando aparece uma flor...”.
Mas, que lindo perfil ela tinha, e o Cuelin ao fundo. Que belo quadro - ali a mulher, a pintura e o Cuelin que inventara a paisagem. Então a arte podia ser a arte de fazer arte. E a percepção deste duplo e das sequências que pareciam estar na origem das coisas podiam me permitir uma pintura plana e profunda, de pouca tinta e muito colorido e que por sua clareza e verdade podia alegrar o mundo. Mas a arte era a finalidade da beleza e esta necessária e útil, pois era a beleza da verdade, mesmo que mentisse. Era como a cor do Belo. Brilha e não existe, pois nada que não prático poderá ser belo e a beleza é leve, alegre e radiosa. Pode ser lírica, pode até ser triste e enganosa, mas aí já não é a minha. A minha é a primeira, a mais manual e melhor usada.
E assim trinta e cinco anos de laboriosa pintura se passaram antes que percebesse que havia jarros e jarras de flores. E que as flores eram para os vivos. E num belo dia (em que ano, em que mês?) um trenzinho quase pedrês. O mundo é todo fumaça. Toda Maria era virgem, santa e devotada. Um dia um trem, um passeio. O mundo era só um passeio. Toda Maria é fumaça. E assim os jarros e jarras os fui fazendo como fumaça. Restei três anos olhando, olhando o dia inteiro as minha carpas coloridas e prateadas do meu estúdio-refúgio de Mirantão, para aprender a desenhar, e de modo que quando vi o Cuelin de Tiradentes eu já sabia o seu desenho, e era só por as cores, ou seja, por o inexistente. Graças ao evolucionismo, enfim, eu pintava sem erro nem retorno e por mais que pareça extravagante só muitos anos depois, já pintor profissional, é que soube, ou melhor, me interessei em saber que o vermelho com o azul dava verde. Pois nada mais sensato. Mas, sinceramente, não tenho muita certeza disto. Sei que minhas mãos é quem pintam, que a intuição tinha um cérebro próprio, de um tipo especial de genes, e que se localizava num lugar próprio em volta da cabeça. E assim como as mãos, a intuição era capaz de grandes prodígios, de grandes telas bem feitas e inusitadas. Telas, diga-se, que precisavam ser pintadas com velocidade e urgência, pois estes eram os tempos equivocados onde os bárbaros chamavam simples tranças de grande arte e a baixaria cruel de paixão artística. E nem as formigas, os vermes, nem os ossos incomodados do descanso escaparam da faina dos novidadeiros. Eram artistas que haviam dado suas cabeças a interpretes rumorosos que só atrapalhavam o puro silêncio das imagens, eram curadores pagos pelos senhores de Kassel, sabidos críticos de bancos de investimentos, e uma verdadeira entourage de desempregados e artistas irrealizados, e que usavam e abusavam dos vendidos ao tempo em que temiam as almas geniais. Bárbaros, como ondas de bárbaros eles tomavam os jornais, os ministérios e de modo que mais do que nunca a pintura tinha que salvar o mundo dos bárbaros, os bárbaros do derradeiro império americano, da Europa da pouca virtude, da China nouveau riche, da Inglaterra terrível... enfim, uma pintura que fosse uma mulher e uma mulher que fosse todas as outras, a minha derradeira e maravilhosa mulher. Mas, seria a pintura a mulher?
Não creio.
 |
| Escuela Che / Santiago de Cuba / 2005 |
