Pintar é como dançar um tango ou lutar como espadachin num filme de Errol Flyn. Ouço Granada. Carlos Ramirez cantava Augustin Lara. Granada, terra sonhada...Eu acordava pensando na natureza, procurando ser ela e não ser ela, e querendo pintá-la como uma mulher -, inventada e perfeita, na tela e para sempre. Era uma grande tarefa. Um retrato era mais que um retrato que era mais que um retrato. Era preciso que a Duquesa de Alba arreasse do cavalo, e que a paisagem mostrasse um pouquinho de Granada, a terra sonhada. Mas não do sonho. Terra acordada, como Tiradentes. Para pintá-las eu tinha que ser outro, teria que arriscar tudo num lance de cartas de tarot. Mas não pensem que falo de um tarot qualquer. Eu nem gosto de tarot. Coisa impregnada de cultura genética supersticiosa, religiosa, muita cabala, muito Egito, muita Marseille, enfim, a nova paisagem, a nova mulher, pedia um novo baralho, novas cartas que paradoxalmente nos liberassem das cartas -, cartas que verdadeiramente não mentissem jamais. Eu adorava os paradoxos. Eram a prova do raciocínio perfeito. Nada similar na pintura. De modo que meu sonho foi pintar um tarot capaz de sortilégios, evidentemente, tal sua pureza luminosa, seus raios de sol e suas interpretações libertárias. O mais pessoal e marginal dos tarôs. Faz 20 anos que o pintei, em duas versões, uma para jogar e outra para expor no Museu do Homem. Quando o ex-presidente Collor de Mello vivia às vésperas de seu impeachment, o Príncipe das Astúrias recomendou-lhe que me pedisse que lhe pusesse as cartas. Eu disse que sim, que o poria por 200 mil dólares (seriam para nossa Fundação), pois não havia votado no Collor. Mas, o pobre do homem estava arrasado e tão indiscernido que não respondeu ao Príncipe, sendo deposto logo depois. Tivesse aceitado minha proposta e a história seria outra. Enfim, conto isto não porque acredite no poder sobrenatural do tarot, mas porque penso na arte. Pintá-lo seria penetrar nos mistérios, para além das rochas... Então havia mesmo o malfadado mistério da arte, algo misterioso que se escondia por trás da arte e que caía como um Bendegó na cabeça dos artistas e criadores em geral. Era uma dádiva, uma oferenda terrível, que nos caia dos céus. Ora, aquela tosca e alegrinha pintura era tão-somente minha. Não abriria mão. Pois bem, eu mesmo o diria, e o que importa isto? E mais: de que vale saber que uma pintura diz logo tudo e de uma vez? E que escrever pinturas é uma tolice, embora as melhores descrições literárias sejam tentativas de pintura. Para quem escreve a mão e a lápis como outrora eu, pintar é dar trégua ao pensamento. Assim, escrever é tentar pintar -, como pintar é tentar pintar. Quando penso na beleza de um quadro, por exemplo, vejo algo de muito humano, uma tentativa de transcender aos horrores e pequenezas do mundo. Horrível arte essa que desrespeita os insetos. Se quiser nos mostrar a metamorfose por que não pinta borboletas? Revolução em pintura é pintar uma nova borboleta. Eu, pequeno pintor na província protesto pela arte e pelos animais, e assim protestando podia ser enorme -, afinal, desafiara Golias, o Exército brasileiro, os agentes da Cia... o General Vermon Walters. Deixe-me ver: Eu acabara de voltar dos Estados Unidos e fui convidado como jornalista e escritor para uma recepção a Rainha Elizabeth, que visitava pela primeira vez o Brasil, na antiga Embaixada, em Botafogo. Imaginem que inocentes! Conversa vai, conversa vem, notei que estava conversando já há um bom tempo com um senhor bastante alto, corpulento e de cabelos grisalhos, e que depois vim a saber ser o famoso General Walter, o ex-chefe da CIA, o homem que derrubou Moussadek -, e que naqueles tempos da ditadura dos militares era o Adido Militar dos Estados Unidos no Brasil. Por intuição, não sei bem, acabei puxando a conversa para William Shakespeare e, sendo ele como era um expert no bardo, disse que iria lhe presentear com uma gravação em português dos sonetos de Shakespeare, ditos pela grande atriz brasileira, ex-aluna do Old Vic, Maria Fernanda. Pois bem. Uma semana depois, de fato, cumpri minha promessa e fui à Embaixada, por sinal a mesma que eu tinha jogado um paralelepípedo no blindex, o estilhaçando, alguns anos antes. Talvez por isso, ou pelo inusitado, ou pelos dois, fui barrado na porta, revistado e interrogado pelos marines, até que finalmente veio a ordem pra me liberar e deixar subir. O General ficou encantado com o presente. Por instantes acreditou em mim. Pos o disco pra ouvir ali mesmo e perguntou se eu tinha algum outro assunto para tratar. Eu disse que não. Percebi que não esperava a resposta. Fez um sinal meio desconfiado com os olhos e sorriu dizendo "... Esta resistência é muito esperta”. Eu não entendi muito bem, pois à época eu já estava desarticulado politicamente e na verdade estava era lutando para salvar a minha vida, chamada pele, já agora antes da de todos, pois este era o novo mundo que a Ditadura trouxera. Era o começo do individualismo que iria segurar a ascensão da pessoa, e me acordar de meus sonhos de jovem.. Tivesse eu o meu tarot naquela época e teria posto as cartas para o General Walters. Não sei o que teriam dito, nem para o Collor nem para o General. Um dia, anos depois, em Amsterdã, o vi novamente, por acaso, num restaurante. Era uma pálida visão do que fora. Fora expulso do Pentágono -, soube, e tinha a cara bem triste. Perguntou-me se eu ainda fazia política. Disse-lhe que não, que na verdade nunca a tinha feito e que quando muito a havia trocado pelo jornalismo e este pela literatura e esta pela pintura, e notei que gostou da resposta. Disse-me que já naquela recepção sabia que eu era um agente chinês, amigo do Mao, ou melhor, de sua mulher Xian Xing. Um parêntesis: "Oui, Xian Xing Oui” foi como chamei minha arte seqüencial sobre o que aprendi na China. São 500 imagens transvisionadas do chinês arcaico, em homenagem a grande inspiradora e animadora da Grande Revolução Cultural que, só não foi maior, por se tratar de um fato político, e não de uma pintura, ou mesmo de uma canção, por exemplo. Falei disso com o General, que me reputava amigo, pois disse que ninguém nunca havia lhe dado um presente a troco de nada. Neguei que fosse um agente chinês, disse que aquilo era uma grande mentira e que jamais fora convidado para exercer tal papel e se o fosse, bem, disse-lhe que não e pronto. A CIA às vezes erra, quase sempre erra - ele comentou. Estava a caminho de uma clínica, tinha entrado no restaurante para almoçar rapidamente, não podia ficar mais comigo, despediu-se e não o vi mais. Muitos anos depois, recebi um e-mail dele dizendo que queria comprar um quadro meu. Disse qual era, enviou os dólares e, meses depois, soube que morreu. Conclusão: as cartas valiam por elas mesmas. Não havia mágica, quando muito luz. Era tudo apenas problemas. A paisagem era só minha, por direito. Hoje, no começo da alta maturidade, digo que raramente sou a natureza. É ela lá e eu aqui... Mas, nada me enternece mais que estes lindos passarinhos da Serra de São José. No inverno falta alimento na mata e eles vem até o Centro Histórico, em busca das frutas. Um bando de tucanos acaba de pousar no alto abacateiro do vizinho. Comem abacates.
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Tiradentes Repintado / Câmara de Mariana / Encontro da AUI / 2007 |
Pombos começam a voar naturalmente pela cidade. A Duquesa, sem nenhum cavalo, já está pintada. E nada passa sobre a terra da pintura. Conta-se que a tela da Duquesa de Alba, de Goya, entrou no Brasil escondida por baixo de uma pintura medíocre, durante a Guerra Civil Espanhola. Para poder sair do Brasil precisou de uma expertise atestando sua falsidade. Hoje se encontra no Museu do Prado. Coisas da arte: mesmo um quadro verdadeiro pode ser duplamente falso.