Imaterial museu da Pintura. Sem muito o saber, com alguma surpresa, às duras penas percebi que a realidade estava sendo inventada na minha frente e que não prever os acontecimentos me impedia o entendimento dos fenômenos. Nada sabia, tudo ignorava, exceto a Pintura. Ali tudo se previa, havia uma regra férrea, e eu podia voar e ser invisível. A pintura então era o meu herói dos quadrinhos americanos e mesmo esta sociologia aprendida com as pipas mal dava para me manter vivo, tal a distorção do mundo político em que vivíamos (e vivemos) - vencedores de uma guerra perdida trazíamos entranhados o sonho de uma outra guerra e, assim, guerra por sobre guerra, guerra em casa, na rua e no mundo, eu morria ou jardinava ou pintava, ou pintava como um jardineiro ou morreria infeliz, naquele mundo de mortos. Acho que foi aí que me tornei ateu, ou melhor, agnóstico, ou melhor, evolucionista, ou melhor araripista. E assim foi, pois anos depois, já na Faculdade de Direito, líder estudantil do CACO, militante da Ação Popular só não fui pra guerrilha porque não sabia matar e tal não podia o meu humanismo mais camponês que proletário, tal o meu horror à morte e à violência da mediocracia oligárquica. Morte e mediocridade - e eu tinha que aprender a tolerância, pois este era um mundo mal feito, onde o horror precisava ser sublimado para que arte florescesce. Mas, como suportar realidades tão adversas, mesquinhas, como suportar aquele mundo que me matava quisesse eu ou não. Assim, cedo aprendi a tolerância que combatia a intolerância, embora a necessidade de cortar o mal pela raiz tenha dominado grande parte da minha vida. Mundo difícil, complexo, extremamente simples...eu tinha que aprender muito. Mas, faltava tudo, homens, livros, idéias, discernimentos, faltavam heróis, pessoas engrandecidas, de modo que naquele mundo de faltas só as imagens tinham valor aos meus olhos juvenis. As imagens sim, tinham grandeza. Vi montanhas maravilhosas, conheci o Cuelin da China, as Itatiaias, a esplêndida serra de São José de Tiradentes, que agora vejo e todos os dias contemplo do alto de meu estúdio, ainda que para a minha pintura teria bastado o morro nu da Água Santa. Estava tudo ali, o vento, a vista, a paisagem, a imaginação, a possibilidade da liberdade e até as cores pareciam brilhar naqueles olhos do homem ensandecido no manicômio que olhava fixo e gozativo a pipa quieta no céu. Eu amei aquele homem e amei aquela pipa. Mas, como não odiar aquele esquema que fazia aquele homem ensandecido? Bastaria a arte a vida a cor daquela pipa para justificar tal crueldade? Que história era essa que afirmava com tanta lógica ser a bondade e a maldade inseparáveis, e ai de mim que queria a bondade, pois teria que suportar a maldade ou, em outras palavras, ser mau. É certo que anos depois já estudante famoso, cassado e autoexilado consegui como muita habilidade roubar aos poucos quase a metade de uma estante inteira de uma livraria do centro do Rio, especializada em dialética hegeliana e marxista, pois anos antes eu Garoto de Ipanema antes da Garota, roubando inúmeros outros livros atinentes (e havia muitos destes livros nos anos 60. E eu sempre pagava alguns! Não todos ) tive meu segundo maior alumbramento, que foi o pensamento marxista. Um dia, de estalo, compreendi metade do mundo. Eu ali comendo aquele waffler nas Lojas Americanas (era uma novidade!), a uns duzentos metros da praia de Ipanema, de repente, me vi armadilhado no mundo. Então aquele mundo que me matava e vivia, vivia e matava, sei lá, também era um produto formatado (muito mal acabado) da imaginação tornada realidade? Ora, também aqueles homens de Marte podiam fazer as realidades e então como não ser combatente, já que ali, na minha mão eu podia combater o bom combate. Eu ainda era jovem de físico, tinha uma longa vida pela frente (tinha agora mais ou menos 1.000 telas, 2.000 desenhos aquarelados bico-de-pena, 1.200 transcrições visionadas...) e, de modo que, a faina de agir somada à neurose da armadilhação em que nos encontrávamos, todos, só me restou a intuição. Eu sabia que aquilo era um perigo. Terminaria fazendo um pacto com o diabo, ia me custar caro, mas...não, eu não podia aceitar aquilo. Tinha que inventar alguma coisa, um país (eu inventei uma China, em China, o Pragmatismo Possível, meu best-seller de 1974 ), uma mulher (em Maria na Terra dos Meus Olhos, editora Rocco, 1975) um mundo possível (em Marta, Júpiter e Eu, Marco Zero, 1986) e Promeu, o que amazoneu (o melhor livro que ninguém leu). Nascer ou não nascer ? Enfim, poderia eu, um escritor sem leitor num mundo sem leitores ter o poder e o direito, a sorte de decidir se queria nascer...nascer naquele mundo de guerra, guerra-em-mim. Pois é, Promeu pode. E ele decidiu nascer. Foram 450 páginas finais de umas 1.500 manuscritas...e ele concluiu por nascer. E nasceu como um homem maduro de 45 anos, recém liberto e pronto para viver. Como um peixinho naquele rio sujo do Encantado ele saiu nadando esperto e brilhante e cheio de graça. Ninguém, ninguém mais que Promeu amou o ser humano e as coisas, e ele era um pintor, talvez um jardineiro e tanto que quase me matou. Hercúleo necessita ser o escritor. Precisa de peitos de aço, braços enormes e mãos delicadas capazes de gestos elegantes e de grande sabedoria. Precisa da força para delicadamente tirar da pedra do mundo tanta forma e não forma - formas terríveis, de músicas fortíssimas, assim que se deve morrer - e morrer mesmo, a não ser que você seja pintor, pois é sabido que a escritura e a pintura são faces da mesma mão, e que a grafia deve ser elegante, e o lápis afinar o estilo, o pincel calicolorido. Pobre peito de Promeu, o que quase morreu.
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Flores com Borboletas / 110mx120m/ 2004 |