Jamais imaginei que seria o maior pintor da minha rua, fato que somente se deu no começo da minha maturidade, aos 40 anos, mais ou menos, quando vivia como um príncipe paupérrimo no alto da Serra do Mirantão, em Minas Gerais, Brasil. 40 anos? 40 mil anos?
Desde cedo, muito cedo, decidi sem muita consciência ser pintor. Talvez. Nos anos 40, 50, era rara a imagem impressa ou filmada e de modo que quando foi lançada com enorme sucesso a bala Ruth (uma bala ruim com uma linda figurinha embrulhada, que colávamos num álbum e concorríamos a prêmios cobiçados) eu me deslumbrei para sempre com a página dos Quadros Clássicos, a mais bela e a mais difícil de ser preenchida. E assim um dia, um belo dia, desembrulhei uma balinha e lá estava a minha figurinha difícil, As Três Graças, de Raphael, três mulheres nuínhas, duas de frente e uma de costas, inacreditável, massudíssimas, e que me definiu de vez o que viria a ser tantos anos depois. E assim se passaram 40 anos (ou milênios) de minha vida de pintor.
Uma obsessão de um pintor aos 65 anos:… as cores não existem, o que existe é a arte e a arte faz a vida e a vida as cores. Sem vida não é cor, é tinta. Cores, tintas. Umas não existem, outras não valem nada.
Mas, o que é ser um pintor? Ou melhor, quem sou eu, Oscar Araripe, artista do Brasil e no mundo, reconhecido o suficiente, profissional da pintura, vivendo bem, hoje, nestes finalmentes ainda vivos anos que me restam. E digo bem porque posso comer e alimentar e educar, e bem porque sou verbete na Bibliografia do Grande Dicionário Aurélio, ou seja, figuro entre alguns dos notáveis formadores da língua portuguesa… inclusão, certamente, mais por amizade que por mérito, uma gentileza do enciclopédico dicionarista Aurélio Buarque de Holanda, que me honrou com tal data, numa época em que os artistas independentes e as pessoas de bem e de boa obra estavam silenciadas ou afastadas da imprensa oligárquica e inversora de valores, à qual, aliás, eu pertenci por boa década. Imaginem os senhores: um pintor citado no maior dicionário da língua portuguesa... o que em verdade desmentia a frase de Salvador Dali, ao dizer que todo pintor era burro; ou seja, eu o pintor que cansado do verbo achatou as palavras agora podia derreter os relógios sem sentido ou de sentido duvidoso e fazer crer que os burros mais seriam os escritores, se o fossem, haja vista a grande escritura que podia ser a Pintura, escritura muda e silenciosa e que nasce do achatamento das palavras.
Mas, voltemos à pessoa, este alvo da arte. E a propósito: como anda o personalismo, o sistema de idéias do universo da pessoa? Onde anda a AP, a Ação Popular (e não apenas popular) e que tinha e tem tão boas e belas idéias? Pergunto: Como um pintor em plena ditadura dos militares brasileiros e norte-americanos não deveria participar da Ação Popular? Sim, ali, na AP, eu me confirmei outra vez pintor (e também ainda sem muito o saber), pois não consegui ser da ação direta e nem da luta armada, já que aquilo de ter que matar era insustentável e eu não tinha sequer treinamento militar -, medo, eu tinha medo, e também à época já me sentia melhor na ala não-confissional do grupo, já que já duvidava de Deus. Blasfemo pintor desligado.
Deus, ao lado do café e de outras drogas, foi o que mais difícil deixei de crer e de deixar. Deixar Deus, o café… jamais os pude deixar. Deixei de crer, não de deixar. Fui vegetariano absolutista e esclarecido por 30 anos, e só não consegui deixar o café, e a superstição. Hoje, recentemente, por fim, confesso, pude deixar Deus. Ficou o café. Nem mesmo na Justiça divina já acredito… e confesso que aos 60 anos ainda costumava, com freqüência, diante das vicissitudes da vida e dos simples desejos, invocar o que tudo era e podia -, o meu Deus, o rei invencível do meu partido - e que a gota d’água foi o reencontro com o pensamento, ou melhor, com o movimento dos neo-evolucionistas, e em particular com os textos de Richard Dawkins (que, de passagem, intenciono completar, pois digo eu: a arte é o gene e o meme, é Darwin & Dawkins, nada a antecede, exceto tudo, o seu primeiro nome ) que, aliás, conheci pessoalmente a bordo do navio Warrior Rainbow, do Greenpeace, então atracado na Marina do Flamengo, no Rio, durante a Conferência das Nações Unidas - ECO-92, quando expus ao ar-livre, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, grandes pinturas intituladas Extinção Nunca Mais, uma lembrança e uma homenagem ao movimento Tortura Nunca Mais - exposição vista por público estimado de dois milhões de pessoas. Um prodígio. Mas, nem por isso parou a extinção. E nem a tortura.
Esclareço: Richard Dawkins, naquela época, ainda não era o grande pensador bright (o mais iluminado pensamento desde os anos 60, e que logo pessoalizei, intentando ver a arte evolucionista, e encontrá-la racionalmente, antes de tudo, no princípio do cosmos, e mesmo antes. Muito bem. ...ou já era e não sabíamos mas... muito especialmente, Dawkins se parecia com um homem de Vênus. A cara muita limpa, muito pacífica, parecia uma águia, a águia que viria a ser e eu não sabia. Um guerreiro maravilhoso! Do Arco Íris! - pensei... o vendo ali em pé junto a outros greenpicistas que também nos recebiam com as boas vindas; e tal era o encanto do celeste navio ancorado, iluminadíssimo, que a Baía de Guanabara ainda lateja no meu olhar, tal a elevação, o magnetismo daquele homem interplanetário, muito simpático e tranquilo e que segurava em suas mãos muito leves e finas um copo de suco de laranja. Um homem de Vênus tomando suco de laranja. Mas, droga. Anti-religião é religião. Eu estava, devia estar sozinho. Se as cores não valiam nada, de que valeriam minhas palavras? Se não sabiam que depois do moderno, enfim, viria a Pessoa? A pessoa. Ninguém a amou mais que eu.
Mas a paz, dulcíssima pessoa, não era verde, ainda que seu sangue o fosse -, como muito mais tarde vim a saber.
Idéias. Idéias são pinturas e pinturas são cores caladas que gritam silêncios que todos ouvem. Eis aí o verdadeiro dinheiro: a Pintura. Um dia, em Londres, vivendo uma vida de jornalista iniciante, num jantar com um conhecido de nome David, aleijado, banqueiro, judeu, pai de bebê, um homem muito vibrante e que mesmo vitimado pela poliomielite dirigia seu Bentley, especialmente adaptado, lá pelas tantas, perguntei de chofre: "David, um homem rico, rico mesmo, quando foge, o que leva?" E ele de pronto respondeu, gesticulando: "Uma bolsinha com uns diamantes e umas telas de pintura enroladas."
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A casa em que nasci, na Tijuca, no Rio. |
Grande verdade: o verdadeiro dinheiro é a pintura. Deus houvesse e teria sido muito bom comigo e muito mais que mereci em me fazer pintor, pois o que mais seria? Um jardineiro, um poeta? Sim e sou. Mas, jamais pensei em ser pintor. Como o ser? e depois, quem ensinava, como aprender aquilo? ...bem, só tive uma aula de pintura, e foi quando vi aquela "figurinha difícil" da Ascenção de Tintoretto. Todas as outras vieram das pipas e dos balões de São João e das bolas-de-gude da minha infância no Encantado, um bairro proletário do Rio de Janeiro, onde menino via universos hublelianos em coloridos olhinhos de vidro, que podia arremessar e quebrar, com grande talento e força. Como Marx, Tintoretto me foi um alumbramento. Enfim, eu era um Garoto de Ipanema. Já podia incendiar o ar com os meus balões e destruir os universos inabaláveis... Manoel Bandeira, meu poeta preferido, disse que seu primeiro alumbramento foi ter visto uma mulher nuínha. Pois bem, Manoel, eu vi três, já aos cinco anos, massudas e coloridas na telinha de papel de Raphael, e que eu segurava na ponta de meu dedo indicador, ali viva, e que anos depois vim a ver pessoalmente no Museu do Vaticano, se não me engano, quando morava em Roma, davanti ao Pantheon. Ou melhor: al fianco. No belo Palazzo Crescenzi, del Cinquecento.
Roma. Nunca a vi mais bela. Londres - eu voava de Caravelle de Roma a Londres para ver uma menina interna num colégio religioso. Digo Londres, mas era em Surrey, onde chegava num trem às duas e voltava às quatro, quase pontualmente. Uma hora e meia de beijos na pracinha, vendo, vivendo os cisnes pescoçudos a nadar no gozoso leite das frondosas choronas de verde veronese. Quanto gozo gozado! Roma. Eu amava aquelas pedras, aquela mulher que nela se insinuava (eu fantasiava) e que surgia em cada rosto que cruzava e queria, naquelas ruelas barrocas, oitocentescas, medievais, imperiais, etruscas -, e aquela Via Apia, que num fascínio me levava à Veneto. Via e não via e de tudo esquecia. Tudo era mesmo muito esquecido naqueles tempos de Giuseppe Ungaretti e Herbert Marcuse. E Unamuno. Miguel de Unamuno. Havia a Piazza Navona bem ao lado, a minha trattoria, do Massimo e Mimo, na Piazza del Pasquino, atrás al fianco da Embaixada do Brasil -, a minha bicicleta que por um ano me passeou vagabundo pelas ruas apinhadas da Contestação. João XXIII. Não gosto de papas, prefiro os banqueiros e os príncipes (os que compram minhas pinturas). Mas gostava muito de João XXIII, ainda que meu amor, mesmo, fosse Melina.
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Depois, com a reforma. |