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Cidade Histórica com estúdio do Pintor / Porto Seguro / Bahia / 2000 |
Pintor-faroleiro por cinco anos fui -, e os olhos nele pus. Cinco anos, portanto, ao Farol servi. Faroleiro, fui um pintor solitário e feliz (apenas perseguido pelos bancos dos banqueiros implacáveis), e assim vivi e pintei várias marinhas, algumas falésias. Nascera no Rio, pintara as montanhas de Minas como se fossem ondas, mas não havia ainda pintado as marinhas -, e assim vivi, aos cuidados de um terno farol do sul da Bahia. Fora ali buscar paisagens, uma nova cura, uma vida nova, um novo projeto. Uma nova paisagem de estrelas ainda mais extravagantes, de luzes vivas de muitas cores, falando em explícitos sons, suspiros, gemidos, grandes satisfações. Era rara a arte que as pintara ali, naquele fundo de negro abismal, colossal. Olhos alegres de uma pintura alegre, radiosa como podia e devia ser a vida, tudo ali ameaçado, acabável porém vivo. Dir-se-ia talentos como fótons, migalhas incandescentes, luz do fundo do nada, estrela que a tudo engole. Olhos estrelas. Luzes do terno Farol, circunvizinhando as copas das jaqueiras, dos coqueiros, dos jenipapeiros. Vermelho e branco, olhos a me rodearem terno, Lua e Sol de ouro e prata. Olhos que lembro. Arrebatada rebitada estrela fugidia, abismo negro. Olhos gregos. Parecia uma índia. Olhos claros e bem diferentes. … A mais bela falésia da mais bela mata atlântica, onde nos dias de muito claro podiam-se avistar as costas da África subequatorial, após a linha do horizonte que não existia e era mais alta que a falésia. O mar era mais alto que a terra. Primorosa teoria, certamente boa, e ainda mais extravagante, eu e minha adorada mulher, a musa-faroleira-, ali fizemos a mais bela galeria-casa-estúdio do mundo. Uma linda substância, ainda que vista por poucos. Poucos a visitavam, muitos gostavam, pois compravam, elogiavam, mas havia muitos que se detinham nas lindas pedras do chão, que não eram pedras e sim seixos rolados de hematita preta, brilhante e luminosa -e que catamos em Conceição do Rio Acima, ou ainda nos móveis que conseguimos reunir em trinta anos de morada em Minas Gerais. Era um trabalho hercúleo. Coisa para um pintor. Um pintor, um faroleiro, não, aquela não podia ser uma profissão marginalizada. Afinal, hoje, as farsas caiam ao vivo no teatro das guerras -, e com elas os banqueiros que infestavam o mundo. Uma praga o Brasil teria : Já não se faziam mecenas como antes, num país que nunca tivera mecenas. No entanto, usavam a arte para a autopromoção (defeituosa) -, um mau negócio para a arte, aliás, mas, … a verdade iria prevalecer, a obra se afirmar e fazer valer, sendo enfim reconhecida como o verdadeiro dinheiro. Sendo a arte o dinheiro estava o mundo purificado e eu poderia até deixar de pintar. Ou pintar outra vez meus filhos, fazer auto-retratos last but not least, deste novo rosto que se esvai como sempre a cada átimo que passa. Mal começava, acabava. Não, não comece a viver, pinte, pinte para não morrer - em resumo seria o meu conselho. Pois nada em verdade importava quando tudo importava. O tempo e sua pátina tudo haviam de acertar (ainda que me desagradasse saber que moscas tropicais cagavam nas minhas telas ácidos pretos de fixação fantásticos, tentando, vaidosamente, tapar a minha arte com a mais poderosa das cores, o preto, no quadro feito alegre e radioso. Bem, o pior é que aqueles senhores estavam a abrir museus públicos para abrigar suas coleções equivocadas que tanto dano faziam à estética nacional, e mundial -, tornando-as oficiais e impudicas, com o falso dinheiro do povo. Povo que não delegou a tais senhores e instituições a competência para dizer, por eles, o que era bom ou ruim, fato amplamente percebido pelos arquitetos arquitetados, que passaram a ocupar o lugar dos maus artistas, tal a replicância a que atingiram os pobres preferidinhos equivocados. Horrível. Jean Boghici, o maior dos curadores do Brasil, disse que este modesto extraordinário pintor "era um clarão aberto na jungle da pintura”. Ora, eu é que não iria entrar nesta jungle. Não digo eu, mas minha pintura estava fora da jungle. Fatídico negócio a boa arte, onde você tinha que fazer o pau e a pedra e ainda matar a cobra sem nem mesmo querer. Pintava, e matava uma cobra. Pois pintar, assim como... todos os bons pintores, era como "tirar da barriga”, sem moral nem data algo que perdido fosse recuperado -, para os olhos humanos, dela e do Farol, na verdade as únicas possibilidade de criação original e social, já que o mar estava bem longe.
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A Casa da Lenha / Porto Seguro / Bahia / 2000 |
E assim como um dia amanheci pintor, um dia fiquei rico. De um dia pro outro, fiquei muito rico. De repente, um grande abacaxi na mão. O que fazer com 1 milhão de dólares ? Digo no sentido de como purificá-lo? As aplicações eram todas suspeitas, pois nem sabíamos onde estava sendo aplicado o nosso dinheiro. Talvez para jogar um míssel Bagdá. Bem, àquela altura tinha já muitas dívidas, pois passara os últimos quarenta anos servindo à arte e a cultura, e tal prática neste país onde os artistas pagam os maiores impostos do mundo e são taxados iguais, por exemplo, aos donos de serrarias, etc. Mas, por sorte, ela era uma moça interessante, alta, um puro sangue inglês de Leincestershire, e que ao ver as primeiras 100 imagens do Pilar do Sabuji, resolveu doar esta fabulosa quantia para a Fundação que começava a ter meu nome. Digo meu, mas digo seu, digo vosso, nosso e meu e principalmente de Cidinha. Mas não, não me ofereçam este cálice. Glória e morte andam juntas, e eu quero viver, tenho filhos pra criar, telas para pintar, vidas para com Cidinha.
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Cais da Balsa / Porto Seguro / Bahia / 2000 |
Bem, pergunta difícil é saber quando se começa a pintar. Podem ser 20 anos, quarenta mil anos. Tudo sonho acordado, já pintado, facilmente pintado. Pinto rápido e sem errar, às primeiras horas da manhã. Tendo a névoa como mestra é muito fácil pintar. Amor, Aurora, a Matinata. Era pintor, quis ser escritor. Seria o pintor mais caro do mundo.Pintar para custar bastante. Tinha mesmo que ser assim. No exato em que começava, repito, acabava. De repente, já não precisava do Príncipe das Astúrias, e tal súbita liberdade me alegrava o coração, a menina de teus olhos -, pois assim o nobre rapaz ia poder se dedicar a salvação de La Habana, a bela Espanha da América, e que estava às ruínas. Nossa Fundação ia salvar La Habana -, ia fazer viver os pátios internos dos pavões, os azulejos vitrificados de rosas, as arcadas por sobre tudo, alamedas, ruas, o mar. Pintei tudo e nada deixei. Desaparição total. Tela branca e apetitosa, mulher conhecida e sabida, jatos de tintas já virantes coloridos, tudo cores inexistentes e no entanto ali. O Sabuji. Jamais se viu nada tão belo e vital. Pobre literatura. Como dizer o Sabuji? O Docodema, o Governo do Poeta? O Piauí da Paraíba? O Areião? O Uaupés?
... naturalmente, um a um foram surgindo os pilares da minha pintura. Chamo-os assim porque está tudo ali. Milhares de imagens numa só. Subjetivismo realizado, ali, vivo e colorido, como um claro pleonasmo.