Meu sonho: Pintar o movimento em repouso, o silêncio do grito. Pintar como se não houvesse nada. Nem espaço, nem composição, nem sombras -, só luz. Luz entendida como centelha artística, calor transformador, energia purificada... Pois sim. Alguns (poucos e loucos) diziam ser o sol um mundo frio e a energia uma coisa parada. E não pensem os senhores que sou um escritor niilista, de novelas rocambolescas, que almejam tão-somente negar. Negar, que um pintor necessita de tinta. Um pintor ingrato, insatisfeito com a natureza e os homens, vaticinando o fim do homo-sapiens. Longe disso. Meu otimismo chegava às barras da ficção científica, minha esperança era total. Sempre respondo aos que me questionam que a inspiração são os amigos, a saúde e um dia bonito. Às vezes não necessàriamente nesta ordem. Mas, inspiração não é banana que se plantando dá. Sou brasileiro, tudo bem, chego a por mão no coração quando ouço o hino nacional, mas não sou brasileirista. Sou universalista e araripista -, e olhe lá.
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A Cadeia de Tiradentes / 1990 |
Hoje, nesta linda manhã de junho, a luz está especialmente radiosa. São cerca de oito horas. Tenho tudo arrumado. Cavaletes, potes, um pincel. Meu cavalete é próprio. Sobre ele e a tela que sustenta tenho uma visão aérea de uma batalha terrestre. A tela, em verdade, é um campo de batalha, preferivelmente florido e fácil de ganhar. Cada quadro é uma vitória, sem mortes -, a vitória da vida sobre a vida -, pois saibam, a morte é apenas uma outra infeliz invenção humana. Artista mesmo não morre -, em verdade ninguém morre. Estamos todos aí, nesta pan-pintura inicial, tantas vezes tosca. Rude pedra em que pinto -, pedra branca, uma vela de poliéster de um barco que parte e voa no negro já branco do céu. É um momento em que Netuno pára -, o Sol, na sua grande quinta-grandeza, me olha, e sinto, quase o vendo entrar, sua luz de vitamina D e sua arte sem improvisação nenhuma, e dou a primeira pincelada, ou traço, ou cor, ou nada. Neste momento já curvei minha coluna sobre este barco de Ulisses que eu Ciclope vejo -, e raramente me acalmo e prossigo sempre a pincelada. Não, eu não creio, e não creia nas perspectivas. Isto é tolice. É uma idéia bélica imiscuída na arte. Este, acredito, será o Século onde o bélico não passará. Tudo que é bélico é suspeito. Na verdade, isto a que chamam perspectiva pode ser perfeitamente resolvido com a ignorância da sua existência. Sempre foi assim. O homem pode ser representado de três maneiras: como os egípcios que olhavam a morte de esguio, como a Grécia que os via sempre de frente e como eu, que raramente os vejo, ou melhor, sempre os vejo pelas essências, pelas bordas dos campos. Pintar as almas que passam. Imortalizar as cores. Somar, somar, subtrair. São José me aparece um fantasma. Santa Maria também. A melhor arte é sempre erótica. Daí o valor dos jarros de flores, onde o homem e seu classicismo juntam-se à natureza intuitiva. Grande artista esse, que criou as flores -, creio que foi na Pérsia, no reino de Nabucodonosor. Os jardins suspensos hoje arrasados pelos cruzados de sempre. Restaram as flores, porém. Flores para os pobres do coração, mortos pobres de coração. Longa vida ao erótico, aos pênis e caralhos, voadores ou não, vaginas como xoxotas, voadoras também, ou não, tudo ali, pentelho e fuque-fuque, movimento, gozo e desmaio. Do sexo eu ficaria apenas com o gozo. Nada mais. Nem mulher, nem casamento, nem mancebação. Filhos pelo mundo. Amigamentos. Tudo passa sobre a tela. O ritmo há que se impor. Sem ele a vida passa, ou bobeio e não vou fazendo a praça, primeira, segunda, tris e marcha-a-ré. Bem. Em arte não há marcha-a-ré, no sentido de erro, pois não existe erro na arte, e sim acerto. E tudo que serve pra arte serve pra vida.
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Lagoa do Ceará / 2004 |
Aqui, neste silêncio absoluto, nesta ação de puro salto, talvez do movimento para o estático (onde tudo está em repouso e pode ser visto), tenho que ter o quadro já pronto. Tudo o mais é surpresa, ritmo. Por exemplo: os fótons. Penso que os fótons são as flores da luz e se assim é, como parece, nada nos resta senão a jardinagem e "dar o fora daqui”.
O primeiro plano, por sua vez, outra aberração da arte pecada, desviada, uma vez feito, isto é, pintado, já esclarece não só a impossibilidade como a inutilidade da composição. Experimente, por exemplo, ser e depois deixar de ser uma árvore e pinte-a como se fosse ela mesma, utilizando-se apenas de sua pessoa de artista... no lado direito em baixo da tela, a assine. Inteligência e bom-senso. É mais difícil e bem mais inovador pintar uma arte no chão do que no céu. Assim, o céu pode ser azul. É melhor até que o seja. Mas não perca tempo com ele. Lembre-se que pintar é por fótons no lugar certo. Deixe portanto que suas mãos trabalhem na hora do ritmo, mas jamais no átimo artístico da arte, quando a criação por primeiro acontece. Neste momento você tem que ser todo o mundo, deve ter o controle absoluto da mão, isto é, todos os músculos e órgãos abertos e contraídos. Feito isto, trabalhe. Pinte como se tivesse afinando o estilo, ou fazendo uma ponta numa lança, ou melhor, esculpindo uma escultura na madeira. Vá talhando a tela, pincelada por pincelada, uma cor de cada vez. Procure não misturar as tintas, deixe que as cores se misturem na tela. Use só um pincel, se possível. Faça tudo com elegância e veja se está dançando.
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Duas Igrejas / Tiradentes / 1995 |
Outra coisa : Não se engane com as sombras. Lembre-se de que não havia sombras na caverna de Platão. Havia pessoas. De modo que não perca tempo com as sombras. Quem as faz é a verdade do quadro, como aliás, tudo. A verdade, contudo, não só existe (nem que seja por um segundo) como está na aurora da arte. Experimente pintar A Aurora -, imagine-a uma linda moça do campo que se alça para a sensualidade de um dia lindo de sol. O Sol, em seu esplendor quíntuplo, irradia luz e a luz fótons. Nem traços, nem pontos, fótons. Mesmo as pinceladas devem ser mais um comando do que um resultado na tela. O poder do pincel, sua ordenação, está ali, mas seu vigor parece se esconder na complexidade do artista. A pintura é uma arte extremamente difícil que se deve fazer com muita facilidade. Sofra, se for o caso, na literatura, mas jamais, na pintura. Uma pintura deve fazer belos olhos, pois não os fizendo ela se volta contra o pintor e o enterra em um vale das lágrimas. Pinte fácil e sem errar, ou então escreva. Rompa seus pulmões, sangre, escreva até sangrar -, morra pelos outros, por si mesmo, ou então pinte.
A alegria salva. A alegria purifica. A pintura é a alegria, a alegria com movimento. Alegria de cores, pura liberdade. Minha pintura é alegre e pessoal, mas eu, o pintor, trago a espada. A alegria é uma poderosa espada. A arte faz justiça cortando as cabeças, e mudando o mundo em paraíso. O paraíso. Não há razão para não crer no paraíso. A questão é tirar o inferno de lá. Pintar é também isto: vade retro Deus. Deixe-me viver. Quero renascer minha fé. Fé na imagem que pinto, na minha autoria inconteste, pois eu a assinei. Pinto, logo assino (embora não goste muito desta máxima, racional como uma pedra). A questão é ir à essência. Fuja das palavras. Mais ainda dos academicismos. Toda a cultura está sobre suspeita. Para um artista pouco interessa este mundo. O verdadeiro artista quer o mundo que pode criar. Fuja do eurocentrismo, do americanismo, seja araripista, ainda que a seu modo. Está tudo mofado e falido. Escrever é duvidar. Pintar é trocar dúvidas por certezas. Aqui pintar é lutar -, com a melhor arma, o pincel na mão da pessoa.