CHINA HOJE O PRAGMATISMO POSSÍVEL
O PASSADO JOGADO NO FUTURO
O complexo arquitetônico reúne vários espetáculos. O primeiro deles poderia ser os telhados, o jogo dos telhados. Espalhados em posições assimétricas, porém não conflitante, formam ondas amarelas-douradas de um mar fantástico e sonhado. As telhas são em cerâmica, envernizadas, cilíndricas, e refletem uma luz intensa. Apenas luz. Os ângulos se curvam para o céu, ousadamente, e as bordas se salientam com uma suavidade fora do comum. Telhados e mais telhados, grandes e pequenos, retangulares, em gomos, redondos, em uma ou várias repetições, explodem e se sucedem em armações de madeira, sem pregos, de um vermelhão muito puro, desenhando uma impressão de incrível leveza. Cintas de um azul muito forte correm pelas laterais, separando as bordas dos telhados das tapeçarias de azulejos verde a amarelo-ouro, com desenhos de animais quiméricos e gregas de apurada precisão e variedades geométricas. Um zoológico imaginário guarda os telhados dos mau-olhados, introduzindo o visitante num universo pautado entre céu e terra, de representações celestes e terrestres, de superstição e realidade, de deuses e homens. A idéia da construção deste aglomerado de palácios, escadas, jardins suspensos, alojamentos, praças, pontes, canais, avenidas e muros foi do Imperador Yung Lo, o terceiro Imperador Ming, que reinou entre 1403 e 1424. Entretanto, a Segunda grande impressão da Vila Imperial é que ela não tem data. Apesar de vários palácios terem se incendiado, e paulatinamente reconstuídos ao longo de cinco séculos de história, não se encontra entre eles nada que arquitetonicamente difira um do outro. As épocas são muitas, mas o estilo é um só. Não há ruínas e a particularidade de serem construídos em madeira dá-lhes uma intemporalidade fantástica. É inútil buscar datas, um exercício paupérrimo diante desta singularidade. A Vila Imperial foi pensada dentro de uma idéia absolutamente solecista. A escada conceptual de então pressupunha um universo que descia numa noção de "meio". Assim, após o universo, descia-se à terra, desta a China, ou Chung-Kuo, ou Império do Meio. Depois até Pequim, o centro da China. Depois à Cidade Proibida, à pessoa do Imperador e , finalmente, creio, a seu trono. Essa escada era guarnecida por um outro universo mais imprecisas como devem ser, criavam relacionamentos muito poéticos: aquela tartaruga que guarda aquela entrada, em postura templária, significava o universo; esta passeata de dragões representava o deus das águas, de uma civilização onde o rio é a paisagem que a tudo precede. Garças enormes, pescoços voltados para o firmamento, eram postas ali para beber a água que os céus mandavam. Árvores e nuvens esculpidas em tapetes de mármore, branquíssimos, relacionam-se com serpentes, pássaros e animais inimagináveis que, por sua vez, oscilam sua representação entre os poderes do Céu e a temporalidade dos que mandavam na terra. O enfeixamento de poder levava o Imperador, o Filho do céu, a trancar-se em seu mundo psíquico e físico. Sua política era absolutamente distanciada e a Cidade Proibida, onde habitava com suas concubinas e seus eunucos, fechava-se de qualquer referência exterior. O Imperador, por receio ou excelsa, isolava-se inclusive de sua nobreza. Vivia só de suas audiências primavam pela absoluta falta de diálogo e contato: os ministros, após marcarem audiência, postavam-se de joelhos, fora do palácio, no pátio externo e, sem olhar o Imperador, dirigiam-se a ele. A solenidade deste espetáculo naturalmente reflete-se presentemente nas construções. Os muros, de um vermelho mais forte do que os da Roma renascentista, são isentos de qualquer artifício decorativo e revelam um rigor espantoso. Não sustentam nenhuma construção e foram erguidos com um objetivo preciso: isolar e preservar o lugar onde vivia o Imperador. Também os pátios de aproximação tinham a dimensão correta deste afastamento entre quem manda e quem obedece. Os tronos eram colocados dentro dos palácios, nas salas de audiência, e tinham uma empáfia condizente com uma visão ampla, necessária, de todo o ambiente externo e interno - os degraus que conduzem a eles são sombranceiros e indicam aquela mesma majestade hoje quase antiga e comum aos poderes nascidos e calcados nos grandes mitos. A Vila Imperial conduz-no rapidamente a uma comparação com Versailles. Os estilos, obviamente, são diferentes, mas a idéia de um lugar-residência de um soberano permite a aproximação. Ambas são construções políticas, mas a Vila Imperial tem uma leveza e uma poesia desconhecidas em Versailles. Em Versailles anda-se por uma construção, pelo capricho de um homem; na Vila Imperial perde-se a nocão do lugar, caminha-se pelo trabalho de uma dinastia. Versailles tem data, a Vila Imperial é intemporal. Um é um palácio, o outro uma sucessão de palácios, um complexo de edificações. Em Versailles os aposentos reais são facilmente alcançavéis, na Vila Imperial eles se escondem num labirinto de muros e jardins de discrição. Versailles está fora da cidade, visível; a Vila Imperial forma a medula de uma cidade, invisível. Versailles é luxo, a Vila Imperial é isolamento. Ali é religião, aqui é superstição. Um é compacto, o outro concêntrico. Um e dimensionado, o outro é redimensionado. Um foi construído para durar para sempre; os outros duram pensados para serem efêmeros. Agora estamos andando num enorme quadrilátero de lajotas e, ao fundo, ladeada por três andares de terraços, também em mármore esculpido uma escada nos leva até o Templo do Céu. Um grupo de colegiais, lenços vervelhos no pescoço, cruzam o pátio numa longa fila indiana em formação de três. Uma professora os conduz e cantam alguma canção enquanto caminham. Uma multidão de chineses olha sem se deter no espetáculo. Um guia informa-me que em alguns domingos o lugar é visitado por até 70 mil pessoas. Estamos numa terça-feira e há um número incrível de chineses visitando o local. O Templo do Céu é redondo, tem três andares, seus tetos acompanham a curvatura celeste e está circundado por três fileiras de terraços. Foi construído numa elevação de um seis metros e, ao todo, deve ter uns trinta metros de altura. Possui uma porta principal, mas seu acesso é possível de qualquer lugar do círculo, através de inúmeras portas, todas em madeira laqueada. No Templo do Céu era realizado o culto do Senhor do Céu, uns personagem sem caracterização pessoal e cósmico, adorado por todos os homens, mas somente ao Imperador era dado o privilégio de oferecer-lhe sacrifícios e certas orações. Assim, os chineses comunicavam-se nas essências maiores através de seu Imperador, o pontífice, o "meio" entre eles e a entidade superior. Esse ritual, dizem, existiu durante quatro séculos, sem grandes modificações - ao amanhecer, o Imperador oferecia ao Senhor do Céu oferendas e pedia boas colheitas e prosperidade para o Império. O culto existia, na realidade, desde o século II de nossa era, embora somente com o início da Dinastia Ming é que o templo foi construído, existindo até 1916, quando o ritual foi transformado pelo Imperador general Yuan Che-Kai e, logo depois, abandonado. A Festa das Mil Lanternas, comuns em várias gravuras e pinturas chinesas antigas, existia em função destas cerimônias ao Senhor do Céu. Eram realizadas no inverno e, após as orações privadas do Imperador, havia uma espécie de procissão pela cidade, quando o povo, então objetivamente, participava da comemoração. Não existe atualmente qualquer referência "turística" sobre este ritual, nem mesmo didática. A nova sociedade parece não ter nenhum interesse em explicar aos visitantes como se processava o ritual, quando ocorria ou para que servia. Na realidade, uma cortina de silêncio paira atualmente sobre qualquer referência religiosa, supersticiosa ou cósmica. Ao contrário da Polônia, por exemplo, onde o catolicismo é exercido com um fervor incomum até em países tradicionalmente católicos do ocidente , os chineses contemporâneos pusera-se de costas a qualquer manifestação ou referência religiosa. China e Polônia têm hoje governos marcadamente materialistas. Entretanto na Polônia o catolicismo é apontado como uma religião identificada com as aspirações populares. Na China, a religião era qualquer coisa que não prescindia de uma interposta pessoa. A população participava apenas das quermesses e o culto era alienado à privacidade de uma só pessoa. Religião na Polônia é, e creio que ainda será por muito tempo, alguma coisa de muito vital. Na China foi e é, talvez para todo o sempre, uma abstração dos antigos detentores do poder. O Templo do Céu, com sua três camadas superpostas, formando telhados verdes e azuis, tem uma forma inteiramente diferente dos demais templos e construções chinesas. O número 3, cabalístico e Yang, espalha-se por tudo: três portas principais, três tetos, três terraços, três colunas cilindrícas etc. criando um relacionamento geométrico muito preciso. Em 1889 um castigo celeste, materializado num raio, incendiou o templo, reduzindo-o a ruínas. Imediatamente foi reconstruído com madeira trazida da América do Norte, já que o país, à época, conforme relatórios de viajantes ocidentais, era um descampado só. De qualquer maneira, os chineses souberam trazer o que melhor havia na América em se tratando de madeira. As três peças que sustentam o prédio são colunas de braçadas largas como as do Pantheon romano. Sucessivas camadas de laca vermelha deram-lhe uma textura em nada diferente ao mármore ou o granito, embora sua leveza sobressaia-se em contraposição a estes materiais. Uma sorte do acaso ou um profundo conhecimento de acústica deu o Templo um sentido lúdico de espionagem. Filas de chineses se colocam em um certo ponto, exatamente como uma fila de norte-americanos na antiga sala de audiências de Lincoln, em Washington, e sussurram qualquer coisa imediatamente ouvida pelos seus companheiros em um ponto distante do recinto. Aqui, como lá, parece que os governantes, de ontem e de hoje, tiveram uma necessidade vital em auscultar os pensamentos circundantes. O conceito do microfone escondido, portanto, pode ser uma outra invenção creditada ao gênio dos chineses.* Em Pequim o céu é azul de nove a dez meses por ano, e apresso-me em dizer que as autoridades não tem programas de incentivos ao turismo. Raramente se vê uma nuvem neste céu azul. Faz frio durante o inverno e o outono, embora raramente neve. Pequim é uma cidade seca, fortemente seca. Na primeira semana um tormento para as narinas. É comum ver-se pessoas com uma gaze branca cobrindo as narinas e a boca. Há ainda um vento à hora do crepúsculo. Um vento forte, morno e que levanta poeira em redemoinhos de formação agressiva e veloz. A gazes creio além das razões de higiene - quase uma obsessão dos chineses de hoje - deve servir para proteger-se do vento, da poeira e da secura do ambiente. Descansando em um jardim interno às portas do Palácio das Concubinas, construído numa colina artificial rochosa, sinto outros "climas" do local. Os chineses fazem turismo com a família. São geralmente grupos de três ou cinco. Trazem sacolas de pano com merendas e alguns portam máquinas fotográficas, o artigo supérfluo mais usual na China. As famílias levam as crianças, tomam sorvete e sentam-se nos bancos e na relva. Há uma interessante polarização de "climas" : um do passado, outro do presente. A tomada da Vila Imperial é sem quartel. Um pai segura orgulhosamente seu filho no colo e procura uma boa posição perto de uma roseira de florzinhas miúdas para ser fotografado pela mulher. Depois se revezam, sorrindo sempre. Um grupo de soldados, picolé à mão, sorri para uma espécie de lambe-lambe, uma chinesinha postada em cima de uma cadeira e muito rápida em seus movimentos profissionais. Começo a entender a diferença nominal que tanto confunde o visitante: existe uma Cidade Proibida, mais ela hoje chama-se Vila Imperial e é genérica a tudo. É difícil, creio que mesmo para um bom entendido na história do local, estabelecer limites desta antiga proibição: hoje, uma porta não conduz necessariamente ao que outrora foi proibido, um muro apenas existe como um elemento estrategicamente colocado para nos causar surpresas. De certa maneira os arquitetos foram proféticos em não colocarem portas nos portais. Elas hoje seriam inúteis. Não há um comportamento homogêneo dos chineses para conosco. Às vezes, quando dão de cara com um ocidental, levam um pequeno susto, empreendem um rápido gesto de afastamento, mas logo se recompõem. Outros nos acompanham com atenção, observando nossos gestos. Alguns riem, estranhando o som da nossa língua. Outros mostram-se muito cordiais, tentando ajudar numa dificuldade qualquer, procurando estabelecer um diálogo. As mulheres que nos acompanhavam suscitaram alguns risinhos contidos, por parte das jovens chinesas. Creio que em virtude do penteado, ou da maquilagem, ou mesmo do uso de saia, hábitos estranhíssimos na China. A gravata era observada com curiosidade pelos chineses como algo muito estranho. Também observavam de maneira especial nossas máquina fotográficas e cinematográficas. Estas últimas provocavam às vezes um certo medo nos circunstantes, em razão de estarem apontadas para pessoas e pelo ruído que faziam quando disparadas. Alguns reagiam como se estivessem diante de alguém que lhes apontasse uma arma. A cordialidade, entretanto, era a reação mais comum, embora esteja convencido de que muitos chineses que nos viram, a nós ocidentais, o estavam fazendo pela primeira vez na vida. Uma balinha, embrulhada num papel também comestível, chegou a ser oferecida a alguém do grupo. Se um de nós fazia um gesto de cumprimento com a cabeça via sua atitude imediatamente correspondida com um movimento idêntico, porém mais ostensivo. As crianças e os colegiais quase sempre nos recebiam ou nos cercavam com palmas. Se retribuíssemos com palmas, causava-lhes uma agradável satisfação. Sorrir sempre é um excelente expediente para qualquer indiferença inesperada. Os chineses, creio que quase como consenso, reagem como alguém que se sentisse cercado, sob ameaça. Um passado nada edificante nos contatos ocidentais, o isolamento diplomático em que estiveram durante tanto tempo, a presença de um cinturão conflitante, formado pela União Soviética, Coréia do Sul, Japão, Formosa, Hong Kong, Vietnam do Sul, Tailândia, Laos, Camboja, Índia e outros países, não geograficamente pertos mas suficientemente presentes nas redondezas, forjaram-lhes na essência de suas pessoas uma atitude defensiva. O primeiro contato, portanto, pode ser por vezes alguma coisa fria, distante, indiferente, dispensável. Somente a partir do momento em que se sentem "seguros" é que se estabelece a cordialidade. Uma reação, parece-me, natural. Um corredor de muros baixos, em vermelho-ocre característico, leva-nos até um pátio ajardinado e, deste, entramos no Museu da Vila Imperial. Estamos novamente diante de dois espetáculo: a curisosidade de uma massa incrível e a estrutura originalíssimamente didática do museu. A massa é ávida, vê e lê tudo e se movimenta sem guias e de maneira desordenada pelos corredores. As vitrines são literalmente tapadas pela multidão. As crianças são levadas nos ombros dos pais e são as únicas privilegiadas de visão. Uma clareira aberta numa vitrine é logo disputada por nós. Árvores de jade, árvores de pérolas, buquê de flores em pedras preciosas, coroas cravejadas de brilhantes, esmeraldas, rubis, coroas masculinas, coroas femininas, roupas majestáticas com bordados de ouro e pérolas miúdas e irregulares, jarros de ouro maciço e do tamanho de um homem, anéis, colares, marfins, brincos, prendedores de cabelo em filigrana, prendedores de cabelo ornados com esmeraldas e diamantes, cálices, taças rústicas douradas, vidros finíssimos, jades fantásticos, um biombo de ouro e pedras preciosas formando paisagens de detalhes preciosíssimos, enfim, um verdadeiro museu de jóias ao horizonte da nobreza chinesa. Os chineses contemporâneos, naturalmente, amam e odeiam esta ostentação. Amam porque se sentem donos dela e porque, antes de mais nada, são belas, independetemente de quem as fez ou usou. Odeiam porque representam uma opressão e uma exploração sem limites, um símbolo de que os levou à ruína e miséria. É um museu de emblemas: enormes cartazes explicam aos visitantes que tal coroa, usada pelo Imperador tal, significa tantos anos de trabalho, tantos anos de alimento, tantas vidas não poupadas pela fome, tantas aberturas pelo desenvolvimento. Painéis de um realismo fantástico mostram a dinâmica das explorações e o furor opressivo dos senhores feudais, da nobreza, do antigo sistema. Estranhamente os chineses me pareceram interessados tanto pelas jóias como pela didática que as jóias permitiam. Espanto diante de cifras, tais como "o ouro contido neste jarro daria para alimentar 1 milhão de chineses durante um ano", era muito comum e gratificante. Os cartazes explicavam também que tal ouro não era vendido porque hoje não havia mais fome no país e que restariam como símbolo de uma opressão que o povo havia afastado para sempre. Diante de três jarros de ouro maciço, imensos e pesadíssimos, lia-se com eles que poderia construir uma pequena hidrelétrica para uma região da província de Hopei. Um outro cartaz mostra-nos esta represa, já construída, assim como a riqueza que ela trouxe para a região e seus habitantes, em números de produção bastante animadores. O mais interessante, porém, é que com esta produção, em um ano, poderia se fazer um jarro igual àquele que hipoteticamente tinha lhe dado origem. Assim, além da riqueza surrupiada, a peça, na mudez de sua inocência, era responsável por uma riqueza factível, idêntica mais multiplicável pelo trabalho e pelo progresso. O trabalho, portanto, era a grande lição da riqueza, ao invés da abstração pura e simples da riqueza. Se o ouro contido naquele vaso poderia criar beleza, havia uma beleza maior, porque desdobrável, e que nascia da riqueza do trabalho, inerente tanto à peça quanto à represa. Acho que os chineses aceitavam com facilidade a explicação e concordavam inteiramente com sua premissa. Se assim for, fico a imaginar a grandeza que as gerações futuras verão na riquezas da China, surpreendentemente enriquecidas e da qual estas que hoje vemos neste museu são apenas uma pálida e paupérrima lembrança. O que surpreende neste raciocínio está longe de ser no entanto o idealismo hipotético, purista e de certa maneira ingênuo com que foi moldado. A foto da represa, seus resultados, ao lado dos jarros, são duas realidades palpáveis. Uma ideal, outra real, uma passada, outra presente, mas ambas projetadas no futuro, o que lhes subtrai a possibilidade de qualquer experiência perdida, dando-lhe uma projeção mais perene do que qualquer capricho humano, tanto na sua inconseqüência menor como na sua conseqüência maior. Os chineses, assim, vão assumindo uma atitude diante da sua História - uns fazendo riquezas, outros extraindo beleza das riquezas. Saindo do Museu andamos em direção do Palácio do Céu sem Nuvem, do Imperador, e o Palácio da Paz Terrestre, da Imperatriz. Dois leões de bronze, chifrudos, enormes e seríssimos, protegem a entrada das duas edificações. Uma galeria de simetria notável, formando uma varanda de treliças em desenhos geométricos, leva-nos até um laguinho de carpas. Pontes com balaustradas em mármore esculpido aparecem por todos cantos. Pouco a pouco observo que outros lagos, diferentes em tamanho e formas, conjuminam-se formando um complexo de fontes e canais que envolvem os dois palácios imperiais. Uma colina artificial surge à frente. Chama-se colina do Carvão e é arborizada com ciprestes muito antigos. Possui cinco quiosques, quatro sem forma muito definida e um quadrado. O lugar é histórico por um desfecho razoavelmente operístico: em 1644, o Imperador Li, também chamado o Temerário, ali se suicidou. Diz-se que Li, o último dos Ming, à hora da audiência, surpreendeu-se ao ver que ninguém o estava aguardando. Até seus ministros o haviam traído. As hordas mandchous haviam tomado Pequim e o Imperador foi o último a saber. Desesperado, corre até à colina, envolto numa túnica bordada de dragões, e enforca-se, sem que antes porém deixasse escrito na túnica uma suplica-testamento: "Não façam mal a meu povo". O Imperador Colibai, o vencedor dos Ming e o primeiro da dinastia Mandchou, mandou construir uma outra colina, bem ao lado da colina do Carvão, batizando-a de Verde. Depois construiu um Pagode Branco, o único prédio visível fora dos muros da Vila Imperial e que, esteticamente, é inferior ao conjunto de edificações do local. De notável, à entrada, um buda esculpido ensinando a seus discípulos a sua doutrina. Integrando o complexo, o Muro dos Nove Dragões, em baixo-relevo, cerâmica, nas cores amarelo, azul, verde e vermelho claro. Uma série de portas redondas, chamadas "portas lunares", de grande beleza e originalidade, completam o cenário destacável da região. A Vila Imperial, em seu conjunto, é, sem dúvidas, um dos lugares de maior unidade arquitetônica do mundo. Inteiramente fora dos roteiros turísticos, a Vila Imperial guarda uma "rusticidade" cheia de charme. Apesar do asseio e das cercas protegendo os entalhes dos mármores, o lugar não tem nenhuma das características dos lugares explorados pelo turismo no ocidente. Entretanto, não me lembro de ter visto nenhum lugar "turístico" com tantos visitantes como aqui. Este paradoxo, bastante comum dos lugares históricos da China, faz com que os visitantes ocidentais se sintam como "exploradores" de uma realidade de que mais se parece com uma de outro planeta, tal a estranheza em que está envolta. A inexistência de bilhetes de entrada, de guias no local, de policiamento nas dependências, de panfletos, restaurantes, horários de visitação, etc. dá a à Vila Imperial um aspecto sacralizado, tal como se alguém estivesse visitando, num píncaro andino uma vila inca ainda perdida. Existe um "turismo" incrível, mas inteiramente diferente dos padrões ocidentais . A massa faz um turismo verdadeiramente de massa, contudo sem nenhuma característica do que conhecemos como "turismo de massa". A idéia de um museu vivo, idéia que sobressalta o ocidente e se constitui num dos objetivos de qualquer reforma cultural, aqui parece acidentalmente ser uma realidade, uma meta já alcançada. A Vila Imperial é um museu vivo, democratizado. Seus slides foram substituídos pela didática e suas datas perderam qualquer sentido diante de uma representação simbólica jogada apologéticamente para o futuro. *Sem blague, o "povo mais antigo do mundo" é inventor de muitas coisas: o tanque de guerra ,blindado com madeira ou cobre, puxado a cavalo e conduzido por arqueiros, aparece na Dinastia Hsia, ou seja, 25 séculos antes de Cristo. Os primeiros trabalhos de irrigação surgem durante a inundação do Rio Azul, em 2085 AC. O cultivo do bicho- da- seda e a tecedura aparecem também na Dinastia Hsia. O vinho de arroz no Séc. XIX AC. Os primeiros instrumentos de ferro em 1610 AC. Durante a Dinastia Chow, IX Séc. AC., equipes de astrônomso reúnem-se com grupos de astrólogos e fazem o primeiro ensaio de astrologia científica. No II Séc. AC. a trigonometria, aplicada à astrologia, aparece já como ensino, assim como várias noções de matemática. Nesta época aparece o primeiro papel de seda animal. Em 105 da nossa era os chineses inventam o papel vegetal. A impressão é também uma invenção tipicamente chinesa e foi aperfeiçoada em várias etapas. Em 175 AD. grava-se em pedra, e depois imprime-se em papel, os Cinco livros de Confúcio. A gravação em metal aparece no VI Séc. da nossa era. Já no início da Dinastia Tang a impressão com clichês era prática comum. O primeiro livro, As Sete Folhas de Kai Yuan Tsa Po, é de 713 AD. No Séc. XI, um popular chamado Pi Sheng inventa os caracteres móveis em argila. Em 1221 aparecem os caracteres móveis em madeira. A pólvora já era utilizada pelos chineses, em fogos de artifícios, por volta de 80 AC., e é provável que tenha sido uma invenção chinesa. Embora Marco Polo, no Séc. XII, não lhe faça nenhuma referência, os chineses reclamam para si a invenção da bússola, na China conhecida desde o ano 2.634 AC., segundo referência encontrada uma espécie de dicionário chinês do ano 121 da era cristã. Em Pequim, conta-se uma piada, segundo a qual os chineses seriam o povo mais inteligente da Terra. Inventaram a impressão e não inventaram o jornal; inventaram a pólvora e fizeram fogos de artifício; inventaram a bússola e não descobriram a América.
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